Categorias: Suspiros

O pacto

 

Algumas histórias a gente não conta. Fica com medo de verbaliza-las porque uma vez materializadas, algo pode acontecer. A nossa história eu escondi debaixo de sete chaves. Tinha medo que se a soltasse ao vento ela iria embora pra nunca mais voltar.  Tinha medo que nos ouvidos dos outros ela se distorcesse. Tinha medo que se a contasse, ela seria apenas mais uma história. A nossa história eu queria que fosse só nossa, eu não queria dividir com mais ninguém. Até que um dia, tudo mudou.

Eu nem lembro direito como ela começou. Acho que foi quando chorava as pitangas de um desamor que havia despedaçado o meu coração, quando você, pela primeira vez fincou o pé de forma dura contra mim: “Pare de chorar por mané, Preta! Uma mina preza como tu choramingando por um cara que nunca te mereceu. Tu merece coisa melhor!”

Na época quis ficar com raiva de você pela verdade dura e crua. Mas como podia? Você era meu amigo há mais tempo do que eu lembrava, sempre por perto, sempre atencioso. E claro – confesso que me ganhava na discussão cada vez que me chamava de Preta, Pretinha, Morena, ou qualquer referencia a minha longa crina castanha. “Tu merece melhor!” – você repetia. Mas como você podia saber?

Pouco tempo depois, nos apertávamos no bar de sempre, tomando cerveja com outros amigos, ao som de um samba rock que você insistia não saber dançar. Logo você – cheio de malandragem e de uma malemolência ao andar que deixava qualquer amiga minha de perna bamba. Tá, eu também ficava um pouquinho de perna bamba, mas você era meu amigo, e eu não podia olhar você assim. Podia? Não, não podia. Então teimava em te apresentar para todas as garotas que eu conhecia, mesmo sabendo que nenhuma delas merecia mais do que um sorriso teu.

Nesta noite discutíamos tua lerdeza na paquera. Eu te acusava de tímido. Tu te proclamavas “seletivo”.  A discussão seguiu até o meu  desafio deveras infantil. Se a “seleção” era o empecilho, te desafiei a escolher e beijar a menina mais bonita do bar. Aquela que você desejasse mais. Qualquer menina que, na tua concepção, era digna da tua atenção.

Você passou os braços por debaixo dos meus bem devagar. Com um braço segurou a minha cintura, e com o outro orientou meu corpo pra perto do teu, segurando a minha nuca. Mirou profundamente meus olhos com tuas bolitas negras  (não como quem pede licença, mas como quem avisa “isso vai acontecer”), suspirou profundamente e me beijou a boca como eu nunca fui beijada. Eu perdi o fôlego. Perdi o chão embaixo dos meus pés. Perdi todos os sentidos na malícia da tua cor. Eu só queria que aquele momento durasse pra sempre.

Como que nesta vida, a palidez da minha existência tinha chamado a atenção da tua melanina?

Você então me contou que me mirou muito antes de eu perceber. “Desde o primeiro dia que te vi, naquele posto de gasolina do centro, de shortinhos e blusinha laranja, a caminho de Tramandaí” – isso tinha acontecido muitos anos antes da gente se conhecer, e virar amigos. “Você nunca notou porque estava ocupada namorando manés”. Ri sem graça tentando assimilar – “Então você não era só meu amigo? ” perguntei ainda tímida – “nunca quis só isso, Preta”, e entrelaçou os dedos nos meus cabelos, e com a boca calou todas as dúvidas dos meus lábios.

Não demorou muito pra eu perceber a diferença de gostar de você. A mudança do sentimento de amigo para um algo mais foi natural, gradual e deliciosa. Tu me deixavas livre e eu sempre voltava. Tu enrolavas os pés nos meus, e minha vida toda desenrolava em volta. Você trouxe a simplicidade para a minha complexidade. Reduziu minha ansiedade, calibrou minhas ambições. Do teu lado eu só queria sombra e água fresca, e qualquer outra necessidade parecia supérflua quando éramos nós dois. O teu “Calma, Morena” tinha o poder do mais forte ansiolítico e o frescor de um banho de água salgada.

E quando me acalmava, eu me perdia decorando as linhas das tuas tatuagens, como uma boa aluna estudando sua lição preferida. Aquele dragão. Ah, aquele dragão da tua cintura, que ficava com a metade escondida pra dentro da tua bermuda. Eu quis ser dragão desde pequenininha. Eu tinha pouquíssimo ou nenhum controle quando aquele dragão me encarava. Eu queria admitir que eu estava perdendo o controle de mim. Mas eu tinha medo de te dizer.

Com você não era diferente. Você dizia que eu te deixava nervoso, com uma queimação no estômago e com as mãos suando. Brincava que eu era algo como uma febre. Que a única solução era deixar queimar. Você que sempre foi bicho solto, surpreendentemente estava sempre por perto. Eu queria te dizer que eu sabia que te tirava do centro. Mas eu tinha medo de te dizer.

Quando a gente brigava, e por algum motivo eu tinha te magoado, amarrava flores no teu portão. Quando a gente brigava e por algum motivo você tinha me irritado, você se enfiava no meu pescoço, e beliscava meus braços dizendo “ai Pretinhaaaaa…” e eu logo caia na gargalhada. Não tinha como ficar braba com você. Eu quis muitas vezes. Principalmente quando te perguntava o que estava acontecendo entre a gente, procurando entender ou rotular aquilo que crescia dentro do meu peito. Você sorria um sorriso displicente e me dizia “sou teu pretinho e tu é minha preta”. Aquela indefinição me matava. Agora  quem queria mais era eu. Mas eu tinha medo de te dizer.

O problema é que, diferentemente de outros amores, você era bom demais para eu perder. E o medo que isso acontecesse me sufocava, me enlouquecia. Com raiva desta insegurança, eu te magoei. E lá, naquele momento, eu não sabia mais como voltar pro teu abraço. As flores no portão secaram. As minhas lágrimas não. Eu estava indo embora do país e não conseguia pedir desculpas e nem me despedir.

Você não discutia, não me xingava, apenas me oferecia o pior tratamento possível – o teu silencio. Dias antes de embarcar você me escreveu perguntando se eu já tinha ido embora. Respondi que ainda estava perto, mas de novo – morrendo de medo que você não quisesse me ver . Para a minha surpresa, você declarou em tom dolorido que precisava me ver. Quando voltei pro teu abraço, quis me explicar. Pedir desculpas. Você secou o meu rosto, me abraçou bem forte  e disse que nada daquilo importava.  Você só queria poder enrolar teus pés nos meus uma última vez antes de eu ir embora. Eu queria TANTO te dizer que eu te amava. Mas eu tinha medo de te dizer.

Quando voltei ao Brasil, anos depois, te encontrei no mesmo bar onde tudo começou. Eu quis resistir, com medo de cair de novo na tentação da tua malemolência. Eu não tive a chance! A tua cor era tudo que meus olhos cansados queriam enxergar. Teu cheiro tudo que eu queria sentir. E tua boca, tudo o que a minha queria de novo provar. Depois de tantos encontros, desencontros e reencontros eu já não tinha mais medo do que queria falar. Disse que era contigo que eu queria ficar. Sem pausas. Sem meias palavras e indefinições.

Você então me propôs um pacto.

Disse que no auge da minha sabedoria balzaquiana, eu sabia que a vida ainda ia jogar umas bolas curvas. E que se depois de toda a confusão passasse, se depois de tudo que eu vivesse e não encontrasse alguém melhor do que você, a gente se casaria. “Tu tá achando que eu vou casar com 40 anos??!” – vomitei raivosa. “Preta, se tu tiveres 40 anos, e ninguém for melhor que eu pra estar no teu lado, eu quero ficar velhinho contigo – numa casa na praia. Deixa toda essa pá de gente casar antes. Quando eles tiverem se separando, a gente vai estar na melhor fase”. Eu enfureci e te joguei tudo que alcancei no teu apartamento, e disse que não ia esperar PORRA nenhuma. Você segurou as minhas mãos, me olhou bem sério (como dificilmente fazia) com aquelas bolitas negras e disse “Eu prometo que nunca vou te enganar, Preta. Eu prometo que se até lá tu me escolher pra ser só teu, eu vou ser. Mas eu não quero ficar contigo agora, casar com 30, te magoar e me divorciar com 40. Eu quero ficar velhinho contigo. Te fazer sorrir.”

E na profundidade do teu olhar, eu entendi que o pacto era sincero.  Você tinha que voar solto. E eu sabia que toda a tua intensidade não podia ser contida. Não agora. Assim como eu sabia que você queria me poupar dos teus exageros, vícios, incertezas e confusões. Muito provavelmente você também soubesse que não conteria os meus. Mas eu queria me jogar no teu mar, mesmo de ressaca. Ainda que perigando me afogar ou ser derrubada por uma onda mais forte. Você me prometeu mares calmos e tranquilos, para refrescar minha pele, beijar meu corpo e aliviar minha cabeça. Numa fase de maré boa, daquelas abençoadas por Iemanjá, que rende frutos.

O pacto era justo, e eu não imaginava melhor plano do que passar os melhores anos da minha vida do lado do meu melhor amigo, do meu amor mais sincero que já tive – aquele que eu cuidava com mais zelo e precaução. Então eu apertei teu minguinho com o meu, e selei o pacto com um beijo misturado a um sorriso. Eu ia ficar velhinha contigo. E nada mais importava. Eu não tinha mais medo. Eu abri mão do medo pra pegar na tua.

Mas foi quando abri mão do medo de ter perder, que o medo me encontrou.

Era um domingo quente de verão. O telefone tocou com a terrível notícia de que você tinha partido. Acelerou rumo ao infinito, para um lugar onde eu não podia entrar. Eu perdi o fôlego. Perdi o chão embaixo dos meus pés. Perdi todos os sentidos na ausência da tua cor.

Minha cabeça rodopiou mil vezes pensando em todas as vezes que tive medo de te dizer algo, com medo de te perder. Eu gritei, eu espraguejei os céus. Eu tinha te perdido sem ter dito tanta coisa. E agora não havia mais tempo para nada. Chorava um pacto que nunca haveria de se cumprir.  Chorava pela falta da alegria que tu trazias a vida de quem tocavas. Chorava pela vida ceifada. Chorava – ainda que de forma egoísta – nunca mais poder deitar no teu peito, sentir o teu abraço e beijar teus lábios. Chorava porque você não iria nunca mais me fazer sorrir.

Jogada no chão do quarto, abraçando as antigas fotos, entendi por fim que tu foste do jeito como tu queria ser. Algo como um cometa na minha vida. Rápido, raro e tão cheio de luz. E foi embora me deixando pra sempre marcada com o teu senso de urgência, teu gosto pela vida, teu compromisso em ser sincero consigo e com os outros,  e de fazer o que se tem vontade. Eu prometi nunca mais ter medo de falar de amor.

Dias depois saí de casa pela primeira vez para encarar a vida lá fora, após ter vestido o que achei que era a melhor cara que encontrei. Parei para comprar uma água, no mesmo posto de gasolina que você me viu pela primeira vez. No meu primeiro contato visual com o mundo, um senhor de meia idade me pára, segurando-me pelos ombros:

 – “Por que tão triste, menina linda?”

Dei a versão resumida achando que ele ia desistir de me animar. Au contraire. Se parou na minha frente a falar como a vida era linda, de como eu era linda e de como tinha gente lá em cima querendo me ver sorrir.

E eu sorri. Pela 1ª vez em dias. Não de alegria, mas de gratidão, pois sei que Deus não desbanca anjos para a Terra à toa. E porque sei que tem gente lá em cima que sempre quis me ver sorrir. E essa parte do pacto eu sempre vou honrar.


Fim da sessão.


Nota sobre o disclamer: Termino essa sessão reforçando o que comecei dizendo lá no início, de que algumas histórias a gente não conta. Talvez porque são essas que a gente mais zela. Talvez porque são essas as histórias que a gente nunca gostaria de ver o fim.

Hoje precisei contar a nossa história, sendo ela a única deste divã que eu declaro como uma história verdadeira. Isso por sentir dentro do meu coração, que talvez tenha sido a única que realmente foi.


 

Antônia no Divã

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Antônia no Divã

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