Efemérides

A vistoria

em
12 de abril de 2016

Existe uma grande batalha traçada ao lidar com a ausência de alguém, que é tratar dos assuntos que ficaram depois da vida. Realocação de pertences, venda de bens, organização de papéis. E como já falei algumas vezes aqui, essas coisas tornam-se pesadas, porque relembram da bagagem emocional que colecionamos durante essa viagem que é a vida, e também a morte. Eu queria poder parar de escrever sobre isso, entretanto estes sentimentos rondando o luto são tão presentes quanto a minha própria presença. Tão visíveis quando a roupa que eu visto. Tão urgentes quanto à vontade que eu tenho de seguir adiante.

Aconselharam-me a não falar mais o nome dele. Disseram-me que eu atrapalharia a passagem dele deste para o outro plano, então eu me calei. Eu parei de olhar as nossas fotos, para assim tentar fazer menos presente a ausência dele. Não mandei mais mensagens na sua página do Facebook contanto as frivolidades do meu dia, meus comentários sobre o novo single da Rihanna e as novidades sobre o que os irmãos dele andam aprontando. Parei de conversar com ele em pensamento enquanto dirijo, e de pedir conselhos, ainda que certa do silêncio em retorno. Ao invés disso, passei a rezar orações decoradas, mantras eficazes, e me resumi a mandar luz, pois me disseram que assim estaria o ajudando. Acendi velas, escutei médiuns, e tentei calar o meu coração, cujo idioma preferido passou a ser a saudade.  Ocupei-me, atendi tarefas e fui produtiva. Distrai-me por dias e a coisa toda começou a ter um quê de evolução. Isso até a vistoria.

Precisei ir até o apartamento de meu irmão para acompanhar a vistoria do seguro do carro dele, que agora seria vendido para o seu melhor amigo. Como sempre, o meu pai – avoado como sabe ser – esqueceu-se do compromisso, e levou a chave do carro com ele em uma viagem. Pediu-me então, que subisse até o apartamento do meu irmão e procurasse em meio as suas coisas, a chave reserva. Fiz uma revisão rápida em armários e gavetas, focada em não pensar nele, não chamar por ele, não chorar. Sem querer, abri a gaveta que jamais fora revisitada após a nossa despedida. Lá estava a certidão de nascimento, um título de eleitor (que ele nunca encontrava quando precisava), um chaveiro com a letra “L” que ele julgou deveras infantil e aposentou, certificados, comprovantes. Uma vida registrada em papel. A chave reserva do carro eu não encontrei, mas o canal lacrimal abriu sem chave ou nenhuma cerimônia. Eu podia ter passado os últimos dias tentado ser forte, trabalhando o meu pisco como deveria e como me era esperado,  mas bastou uma vistoria para entender a minha dor estava mais viva do que nunca.

Desci correndo para liberar o técnico da vistoria, de cara inchada, maquiagem borrada, e apesar de toda e qualquer tentativa de secar os meus olhos,  as janelas da alma vazavam sem nenhum constrangimento. No caminho dou de cara com o porteiro do prédio – “Dona Antônia, a senhora está bem?” – balanço a cabeça freneticamente de forma positiva, contrariando tudo que o resto da cena dizia. O porteiro, que dada a nossa falta de contato eu não  sabia o nome, me abraçou contra o peito, passou a mão nos meus cabelos e me disse que tudo ia ficar bem. E ali eu chorei. Chorei por não conseguir parar de chorar. Chorei de raiva daquela vistoria, do carro e do meu luto. Chorei por não ter ele aqui para poder reclamar que eu sempre tenho que resolver tudo por ele – a vida toda e depois dela. E chorei por falhar em todas as orientações que me deram, já que até meu luto passou a ser pautado por ele, para aquilo que ele precisa para seguir adiante no seu caminho de luz, enquanto eu estava ali, paralisada nos braços de um estranho num corredor escuro.

Tentei me recompor e agradeci o auxilio do porteiro – “A senhora quer que eu ligue para o seu pai, dona Antônia?”. Agradeci mais uma vez e disse que não seria necessário.  Na garagem, chegando perto do carro, o técnico da vistoria do seguro já me olhava com feições de pena, o que declarava que o porteiro havia o inteirado da situação. Disse rapidamente, tentando controlar o choro, que não havia encontrado a chave e pedi que ele reagendasse a vistoria em 2 dias. Ele sorriu um sorriso de amparo, colocou a mão nos meus ombros e disse “eu sei, eu sei, não te preocupa, pode ficar tranquila – eu sei, eu sei”. E de novo, sem acanhamento, lágrimas gordas e acrobatas saltaram dos meus olhos vermelhos. E mais uma vez, me vi chorando no abraço de uma pessoa que sequer eu sabia o primeiro nome.

A vistoria do carro não fora concluída, mas cada fibra da minha dor fora revisitada. Era como se no compromisso de fazer tudo certo, eu estivesse de fato abafando todas as dores do meu peito. E assim, elas não diminuam, apenas acumulavam para romper ao menor sinal de inspeção. E aí que me ocorreu o aprendizado envolvido nesta metáfora. Não existe seguro, sem vistoria. É preciso inspecionar, revisitar, falar, anotar cada parte envolvida. Registrar os sinistros, e os bens preciosos que seguem. Não tem como assegurar o “seguir adiante”, escondendo o que está presente no agora. A vistoria era a única forma de assegurar o bem que estava sendo inspecionado, o bem carro, ou o bem estar.

O telefone toca, é meu pai – muito provavelmente a pedido do porteiro.

– Filhinha, tá tudo bem?

– Não pai, mas vai ficar.

– Conseguiu fazer a vistoria?

– Sim, mas não a do carro.

– Não entendi – disse ele confuso.

– Eu te explico pessoalmente, pai.

– Vou passar mais tarde na tua casa, acho que tu estás precisando de um abraço.

Concordo e desligo, lembrando agradecida dos abraços daqueles dois estranhos que me acolheram durante a minha vistoria.


Fim da sessão.

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13 Comments
  1. Responder

    Marília Pacheco Ribeiro Linhares

    15 de abril de 2016

    Antônia!!!! estou arrepiada sabe! todo q/eu precisava ouvir,ler,sentir,chorar!!Bjos e carinhos!!
    Marília

  2. Responder

    Anna Paolla Santos

    14 de abril de 2016

    Não há nada que eu possa falar para amenizar sua dor, mas um “conselho” posso dar: não fuja da sua dor, do seu luto, tentando com isso ajudá-lo em seu novo mundo. Vc precisa sentir tudo até o fim, gastar essa dor, pq só qdo isso acontecer será possível pensar nele com sdd e não mais com tristeza. Não é um processo rápido, mas com certeza a pior maneira de passar por ele é fugindo do que sente.
    Sinta-se abraçada por todos nós que lhe acompanhamos e partilhamos de sua dor.
    Um bj

  3. Responder

    Anna Paolla Santos

    14 de abril de 2016

    Não há nada que se fale que amenize a sua dor, mas uma coisa posso te falar: viva seu luto e sua dor até o fim. Não há nada pior do que fugir dela, fingindo estar tudo bem, pq vc até consegue levar a vida desde que não apareça nada que te leve de volta a ele, então gaste tudo o q

  4. Responder

    Carla Oliveira

    14 de abril de 2016

    Menina, você é maravilhosa!!! À você, toda a minha admiração!

  5. Responder

    Fabiana Catão

    13 de abril de 2016

    Oie!
    Todas as pessoas do mundo podem te dar conselhos para ver você bem. E todas as pessoas que já perderam alguém muito querido podem tentar imaginar o que você sente e não vai ser a mesma coisa.
    Mas só você sabe como deve lidar com isso e acreditar que Dr. Leo está, sim, sempre com você.
    Beijo grande!!

  6. Responder

    Ana Paula Paes

    13 de abril de 2016

    Quanta verdade e sinceridade em um único texto…Que lindo A.
    Pode chorar, Léo estará sempre secando tuas lágrimas 😉

    Beijos

  7. Responder

    valentinamc

    13 de abril de 2016

    Lágrimas gordolentas e acrobatas aqui também… queria muito partilhar teu abraço agora!!! Beijos!!!

  8. Responder

    Mirna Nunes

    13 de abril de 2016

    Minha querida eu acho que todo sentimento para evitar um pensamento; uma palavra ou uma ação, so vai represar mais esse sentimento de perda; de tristeza e de saudade…..Abra suas comportas e deixe essa água jorrar, minha querida….Com certeza voce vai se sentir bem melhor ! Bjos no seu coração e meu abraço apertado !

  9. Responder

    Ana Teté

    13 de abril de 2016

    Quando uma comida não nos cai bem, o melhor é “por ela pra fora”… Quando um sentimento não nos faz bem… também.
    Já dizia Clarisse Corrêa: “Se doeu tem que falar. Se incomodou tem que explicar. Se tá ruim tem que ajeitar. Se estragou tem que consertar. Ou então jogar fora. Entende? Não dá pra passar a vida inteira com as coisas entaladas na garganta, feito espinha de peixe que não desce e arranha toda vez que a gente engole.”
    A espinha vai deixar marcas, mas ela vai parar de machucar! ❤️?

  10. Responder

    Verônica Barbosa

    12 de abril de 2016

    A dor tem que ser sentida….!!!! Assim sendo, ás vezes, é com a nossa ferida exposta que seremos “curados” !!!

    • Responder

      Verônica Barbosa

      12 de abril de 2016

      Não há como não lágrimar ao ler o seu texto !!!

  11. Responder

    Nice

    12 de abril de 2016

    Sem palavras…com lágrimas nos olhos! Força guria, ele esta bem!!! Um abraço forte.

  12. Responder

    Nanny Ruivo

    12 de abril de 2016

    ?
    O que dizer diante do seu relato tão bem descrito? Antônia queria tanto poder ajudar a amenizar sua dor, diminuir sua saudade… Infelizmente não posso. Só queria … ?
    Oro todos os dias por vcs e por ele.
    Beijos no coração.

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Aline Mazzocchi
No divã e pelo mundo

De batismo, sim, Aline. Mas eu precisei do codinome Antônia - do latim "de valor inestimável" - para dividir minhas sessões públicas de escrita-terapia. O que divido aqui é o melhor e o pior de mim, tudo que aprendi no divã e botando o pé na estrada. Não para que dizer como você deve ver a vida. Mas para que essa eterna busca pelo auto-conhecimento, não seja uma jornada solitária, ainda que pessoal e intransferível. Então fique a vontade pra dividir o divã e algumas boas histórias comigo. contato@antonianodiva.com.br

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