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Santa Claus. Santo Caos.

Natal sempre foi uma época tensa na minha juventude. Muito provavelmente ela fora cheia de magia na minha infância. Mas logo que comecei a cultivar o que acredito ser um pensamento crítico, eu não esperava mais por Santa Claus. Esperava por Santo Caos. Dentro do saco do Papai Noel, tinha expectativa, espera e deveres. Nada do que eu havia pedido pro Natal.

Lembro que nossa programação era toda dividida, e com certo teor de missão militar. Comprar presentes, vestir-se bem, “Antônia esse vestido tá curto, sua avó vai pirar!”, sair de casa no horário, “Antônia, nós estamos atrasados!”, passar na avó nº 1, sair da casa da avó nº 1 no horário para não chatear a avó nº 2, “Antônia, nós estamos atrasados!”, a avó nº 2 ficava chateada pois ganhou menos tempo da noite de Natal que avó nº 1. O meu avô, que durante muito tempo ficou entre esse plano e outro, era motivo de nos reunirmos, pois todo Natal tinha o peso mórbido da possibilidade de ser “o último Natal”. Recordo de meu avô passar as mãozinhas lisinhas nas minhas e dizer “o que vocês estão fazendo aqui? Vão pra praia! Eu iria se pudesse” – sempre com um sorriso de bom velhinho nos lábios.

Embora quisesse seguir os conselhos do meu avô, sabendo que seriam provavelmente os últimos, eu não tinha como escapar. Havia uma obrigação velada com aqueles encontros. As noites Natalinas eram o ápice da reunião familiar. Imagine uma família italiana com 9/10 tios para cada lado, com seus respectivos cônjuges, filhos, e agregados. Toda aquela energia familiar reunida em volta de uma única árvore de Natal num único encontro anual. Encontro este onde eram discutidas todas as pautas, rancores, frivolidades e lavação de roupa suja. A minha família não era melhor que as outras. Mas também não era a pior, eu sabia. Este caos provavelmente assombrava outros lares. E assombrava um tanto a minha cabeça.

Fato é que as energias desta época sempre foram concentradas, expectativas sempre tão grandes, as formalidades e as obrigações sempre tão complexas, que por um bom tempo, para esta que vos fala, a magia morria junto com o peru. Na véspera. Para mim, o Natal era um obstáculo que eu tinha que vencer para poder chegar à praia e fazer o que realmente gostava. Planejar um Ano Novinho com os pés na areia. Viver amores de verão. Curtir as pessoas com quem eu queria gastar meu tempo livre. Mas antes tinha o Natal. Ah o Natal… O Natal era o caos autorizado. Era “divino”. Mas eu odiava o Natal. E me perguntava se o aniversariante gostava da festa dele, festa que eu, declaradamente, era obrigada a participar.

O tempo passou e minha família também mudou. Certo Natal, a coisa dividiu e dissipou-se de tal maneira que em volta da mesa da ceia, estávamos apenas meu irmão, minha mãe e eu. Aquela cena Natalina também não foi das mais alegres. E eu me perguntava se a gente estava fazendo realmente aquilo que gostaria do Natal. Num súbito desespero de quem não queria colocar mais um Natal na lista dos que eu queria esquecer, convidei os dois para irmos à casa de uns amigos da família. Um grupo queridíssimo de pessoas que compartilhavam as nossas vidas desde muito cedo. “Mas Natal é para se passar em família”, disse minha mãe preocupada com nossa intervenção na ceia alheia. “Eles são uma família. Nós somos família. Nós só vamos juntar duas famílias!”.

 Pegamos nossos champanhes e nos movimentamos pra lá. Sem convite, sem aviso, sem formalidade. Vestidos de amor, carregando carinho, panetone e alegria. Na porta fomos recebidos com mais alegria embebida em uma feliz surpresa. Era um milagre de Natal. Passamos o resto da noite relembrando nossas histórias preferidas, a nossa vida compartilhada. Sem presentes. Apenas nós mesmos – presentes, naquele momento.

A partir daquele Natal, o encontro virou nossa tradição. Reuníamos as nossas famílias que não dividiam genéticas, mas dividiam histórias. Famílias de alma. Família por opção. O Natal neste formato não passou a ser mais organizado. Pelo contrário. As nossas famílias eram gritonas e atrapalhadas. Ocupávamos a cozinha juntos, todos os indivíduos falavam ao mesmo tempo, ninguém se escutava e todo mundo se entendia. Mãos trabalhavam nos quitutes e nos afagos. Nossas roupas vestiam nenhuma pompa, mas a tranquilidade de quem está em casa. Os cheiros preenchiam ambientes, as vozes ocupavam o lar. A comida era bem cuidada, cheia de atenção, cuidado e “sazon” – considerávamos todas as gulas, alergias e habilidades. “Tem que ter o salpicão!”;“E a bruschetta!”; “E aquele filé do ano passado ou o salmão do Natal reatrasado. Não! Vamos fazer os dois!”; “Não bota alho que eu tenho um encontro depois”; “Nem cebola, eu tenho alergia!”; “Traz mais uma mesa que não coube tudo.”; “Ih, quem esqueceu o porquinho no forninho!?”

O meu Natal tinha que ter barulho. Congestionamento de pessoas e de ideias. Tinha que acabar com degustação de todos os champanhes e as águas aromatizadas com laranja e alecrim. Tinha que ter cafezinho com chocolate. O Natal tinha que ter um vaso com as bico-de-papagaio da minha mãe. Não havia Natal sem as folhagens da minha mãe. Natal tinha que ter os enfeites de pinheirinho que passamos a colecionar juntos, embaixo de um mesmo teto durante os meses de dezembro. Eu passei a amar dezembro. Passei a plantar manjericão pra ter folhas frescas em dezembro. Passei a plantar expectativa, espera e deveres prazerosos. Tudo de volta no saco do Papai Noel, aquele que antes eu desprezava. E deste jeito, caótico e não planejado, eu fiz as pazes com o Natal.

Com o passar do tempo, essa família também mudou. Aumentou e multiplicou. O formato do Natal também se modificou. Ganhou mais crianças, e com elas, o fortalecimento da esperança. A saudade de um tempo mais lúdico. A renovação dos nossos votos de amor, e de compromisso com nossas novas gerações e novas tradições. Mas sempre cultivando a nossa história.

Penso hoje que Santa Claus nunca mais vai precisar me trazer coisa alguma, pois não desejo nenhum presente além do Santo Caos criado por quem eu amo. Penso hoje que quero pra sempre os meus Natais com as pessoas que eu escolhi, com os costumes que criamos, com as alianças que fortalecemos. Quero no Natal as luzes dos olhos das pessoas que me fazem bem, os abraços apertados e cheios de sentimento. Quero Natal com quem faz questão de lembrar das minhas histórias. E lembrar ano após ano de como foi bom passar o Natal comigo. Sei que desta forma a minha alma nunca vai envelhecer. E o Natal nunca mais será igual. E a cada ano, sempre- sempre melhor.

Feliz Santa Claus. Feliz Santo Caos a todos que como eu, são abençoados pela muvuca natalina.

“Traz o porquinho do forninho!”


Fim da sessão.

Antônia no Divã

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Antônia no Divã

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