Categorias: Efemérides

Queria ser perfeita

Eu queria ser perfeita. De verdade. E eu nem sei como isso começou. Em casa não foi. Meus pais nunca me exigiram perfeição, eles sequer intervinham nos meus assuntos da escola. Talvez porque a cobrança que vinha de mim já garantia notas altas e um bom desempenho em tudo que eu me envolvia. Eu estava entre os melhores alunos da turma, era destaque no meu grupo de dança e comecei a falar uma segunda língua bem cedo. Mas eu queria mais. Queria ser perfeita. Talvez eu culpe a Disney por isso, com suas princesas de cabelos perfeitos e comportamento adequado. Eu nunca fui adequada. Mas eu sempre quis ser perfeita.

A situação realmente piorou quando me tornei adolescente. Eu fui estudar em uma escola técnica cujo corpo estudantil era formado em 70% por meninos. Não foi difícil ganhar atenção na escola, e eu tinha que ser forte num universo basicamente masculino. Logo os holofotes que antes me envaideciam, me tornaram tensa e paranoica. Eu cuidava todos os meus passos, ensaiava minhas falas na cabeça e evitava qualquer situação que pudesse demonstrar minhas falhas. Era exaustivo. Na fase adulta não foi muito diferente. Eu conquistei todo emprego que almejei, eu me formei com distinção em tudo que estudei. Namorei os caras mais populares e fiz um monte de escolhas ruins baseadas na minha vaidade.

Quando o divorcio dos meus pais finalmente teve um fim, decidi que era hora de pegar o rumo do mundo e gozar de um encontro comigo mesma. Talvez lá eu encontrasse a perfeição pessoal que eu tanto buscava. Ao invés disso, Londres trouxe algo que eu jamais experimentara antes: completo e absoluto anonimato. Lá eu aprendi que podia ter meus dias de cabelo ruim que ninguém ia notar (e sempre tinha alguém bem pior). Eu corria na beira do Tâmisa apenas de shorts e top, sem me preocupar em mostrar o corpo. Eu uma vez vomitei de bêbada em público, dentro da manga do meu casaco em um ônibus da madrugada, e me achei genialmente inteligente pela solução encontrada. Algumas pessoas podiam dizer que eu havia me tornado alguém pior. Verdade era que Londres tinha me dado à chance de ser livre pra me tornar quem eu bem entendesse.

Quando chegou a hora de conseguir um emprego, todos os meus colegas de MBA miraram em vagas de gerencia na capital inglesa, posições complexas e reconhecidas. Eu batalhei por um estágio na Yahoo!UK que me parecia instrutivo e divertido. Lembro que na minha entrevista me peguei nervosa falando sobre uma viagem a Tailândia e a diarreia de três dias que tive em Koh Phi Phi. Eu sabia que não ganharia o emprego – era possivelmente a única candidata que havia falado sobre desarranjo durante uma entrevista. Mas para a minha surpresa o emprego era meu – segundo o meu novo gerente, eu tinha algo que ele não vira em mais ninguém: brilho nos olhos, curiosidade  e uma língua solta. E aquilo era bem vindo à minha nova equipe. Eu não precisava ser perfeita. Bastava ser eu mesma. O emprego também não era perfeito. Mas lá eu aprendi muito, e de quebra apertei a mão do Will Smith – e quem dos meus colegas de MBA podia pôr isso no currículo, hm?

Foram os anos mais felizes da minha vida, aqueles em Londres. Talvez porque tivesse o compromisso único e exclusivo comigo mesma. Não tinha que ser filha – irmã – funcionaria – vizinha – aluna – pessoa modelo pra ninguém. Muito embora soubesse que os fantasmas da perfeição moravam apenas no meu sótão, e no de mais ninguém. Já no Brasil consegui manter alguma liberdade das amarras que conquistei em Londres. Outras não foram tão fáceis.

Lembro-me de falar para a minha psicóloga que só voltaria a me relacionar com alguém depois que eu perdesse uns 14 kg, colocasse a minha carreira em ordem, me mudasse para um apartamento novo e parasse de beber tanto. Eu até podia aceitar meus defeitos, mas não estava disposta a dividi-los com mais ninguém. A minha terapeuta na época me mostrou, sempre através de perguntas, e nunca de respostas – como a maioria das psicólogas irritantemente eficazes fazem – que os defeitos podiam ser o tempero de uma relação. O problema é que eu não sabia cozinhar.

Mas aceitei o desafio. De abrir as portas da minha casa (talvez as do coração), e até mesmo as da cozinha para alguém. Já era o segundo mês que eu ficava com um gatinho, quando decidi que aquela quarta-feira seria o dia perfeito para fajitas mexicanas (cujas receitas, estudei profundamente o dia todo). Controlei minha inabilidade e impaciência com as panelas. Tentei não passar acidentalmente guacamole nos cabelos. Tenho certeza de que ele, da tranquilidade do sofá e de sua cerveja com tequila, não fazia ideia do esforço que eu estava fazendo para me manter em controle. Mas eu consegui. E administrei – quase sem nenhum acidente – um festival mexicano todo meu.

Depois da janta, deitei no sofá agradecendo por ele sugerir um filme. Se fossemos pra cama eu teria que ser sexy. Para ser sexy eu ia precisar tomar banho, secar os cabelos, passar rímel e meu gloss preferido e alongar minha musculatura tensa. Confesso que depois de cozinhar, (in)habilidade que eu evito, estava exaurida. Joguei as pernas que deveria ter depilado em cima dele, para então adormecer profundamente.

No dia seguinte, recebo pelo whatsapp dele um videozinho, que ele intitulou de “ronc-ronc”. Já no inicio do vídeo reconheço meu sofá, minhas almofadas – juro que com a evolução da filmagem comecei a temer ter sido uma daquelas garotas que foi filmada furtivamente fazendo um boquete, mas Graças a Deus não era o caso – e de repente aparece eu. Cabelo brilhoso apesar de sujo, semblante tranquilo, em um sono profundo. Parecia com uma das princesas da Disney, a Bela Adormecida – Isso, é claro, não fosse o fato do microfone se aproximar e gravar meu ronco, rouquíssimo e alto, que mais parecia uma britadeira em plena operação. Espraguejei os céus. Antes fosse um boquete no vídeo, mas não eu roncando! Merda! Claro que aquilo era novidade pra ele! Na minha neurose eu sempre o deixava dormir primeiro com medo de o meu segredo ser revelado.

Morri de vergonha, enquanto ele do outro lado, ria achando tudo muito fofinho, explicando que tinha curtido que eu estava dormindo tão tranquila. Dei-me conta que aquela era uma cena nova pra mim. Eu finalmente havia me rendido a exaustão de ser perfeita, pra ser eu mesma. Naquele momento finalmente entendi que não valia perder horas daquele sono tão gostoso para atender ao meu idealismo. Nem por mim, e nem por ninguém.

Concluí por fim , com aquele pequeno vídeo, que não conseguiria aceitar qualquer pessoa na minha vida, sem passar obrigatoriedade pela aceitação própria. Então faria daquele ronco o ecoar da minha liberdade, oras!  Hoje eu não tenho duvidas que ser perfeita deve ser muito bom. Eu queria ser perfeita. Acontece que ser eu mesma é ainda melhor. Ronco, língua presa, teimosia e tudo mais.

Mas vou deixar protetores de ouvido do lado da minha cama. Just in case.


Fim da sessão

Em tempo: O áudio deste post é a deliciosa melodia do sono de uma princesa. Num conto de fadas moderno, é claro.

Antônia no Divã

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Antônia no Divã

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