Crônicas

O primeiro frio

Hoje foi aquele dia do ano em que admitimos que o período de estações mais quentes acabou. Do sudeste ao sul do país, esta terça-feira foi dia de procurar um casaquinho e considerar não apenas a troca de guarda-roupas, mas também a troca de cenários. Ruas mais vazias, programações mais caseiras e vinho. Ora, se tem algo que justifique o frio, é o aquecimento de um coração através da vinhoterapia – afinal, antes só vinho, do que mal acompanhado. Mas o primeiro frio do ano traz muito mais que um cobertorzinho para a nossa cama. Ele tem um quê de nostalgia, de memória. É impossível não sentir todo tipo de arrepio causado pelas temperaturas baixando e os dias se transformando. O primeiro frio sempre mexe com a gente.

O primeiro frio mexe comigo, por exemplo, porque me lembra a infância. Lembro-me com saudade da minha mãe lutando para arrancar-me da cama enquanto me socava roupa, a ponto de eu não conseguir me mexer direito. O primeiro frio recorda o meu pavor infantil quando encarava a serração fantasmagórica das manhãs, no melhor estilo The Walking Dead, a caminho da escola. Lembra-me da minha habilidade de pequena de estar sempre com as mangas ou meias molhadas. O primeiro frio traz de volta a lembrança do meu pai ligando a estufa no banheiro meia hora antes da minha vez de lavar as orelhas, para que eu “não pegasse uma friagem”. Faz-me recordar da minha adolescência, na parada esperando o ônibus, dançando no lugar para não congelar com o ventinho provocado pelo deslocamento dos carros. Lembra-me de sentar com receio na cadeira gelada da sala de aula e da busca por todo e qualquer raio sol na hora do recreio.

O primeiro frio desperta a hora de trocar os biquínis da gaveta pela coleção de meias-calças, e colocar os casacos coloridos para tomarem um ar. Traz o charme das tocas, das mantas e das luvas. O primeiro frio marca o início da era das polainas (me julguem!). O desejo por sobreposições, por abusar do batom escurão e realça o fervor que causam os gatos de jaqueta e botas cano médio. O frio tira pra fora do armário aquela calça gostosa de moletom que cabe tanto em você quando nele. O primeiro frio aponta que acordou a oportunidade de reinventar o visual, se transfigurar, se travestir e mudar. Trocar a paleta. Sacudir a nossa roupagem.

Com o primeiro frio acordamos para súbita troca de cardápio. Onde antes tinha espaço para salada e sushi, agora o estômago clama por risotos, massas e fundis (a vida é curta para se viver sem carboidrato). Aqui nas querências  – e na minha humilde opinião, nada seduz mais que a semente que chega junto com o vento Minuano. Garotos, por favor, não me deem flores, deem-me sacos de pinhão! Com sal, com mel, com vinho, com amor. Isso sim aquece o meu coração no frio. Ou me convidem para ir a serra para tomar uma sopa no pão. Não tem nada mais definitivo entre a solteirice do calor, e o engajamento do frio, que uma sopa no pão em Gramado. É romance com queijo ralado e um bom Carbernet.

E por falar em romance, o primeiro frio faz pensar em carinho, xodó, colo, entrelaçamento. Desculpe-me o clichê, mas como substituir um cobertor de orelha? Ahn? Ou incontáveis domingos chuvosos de edredom, Netflix e amassos?  Longas e promissoras horas daquelas caricias quentes que deixam as janelas embaçadas e o frio do lado de fora. Que estação que sabe criar boas companhias. O primeiro frio lembra pés enroladinhos. Faz recordar da delícia e do desespero que é aquecer as mãos geladas nas costas quentinhas de alguém. Delícia pras mãos e desespero para as costas. O primeiro frio relembra aquele cara que um dia amei e que me enrolava como um tamaki em meio aos cobertores nas sonecas preguiçosas de sábado. O primeiro frio evoca a ida à praia com alguém especial. Ou aquele final de semana no sítio. O primeiro frio lembra o frio na barriga.

Ahhhh nostalgia gelada… O primeiro frio lembra Londres e a Trafalgar Square lotada de turistas e seus guarda-chuvas. Lembra croissant quentinho na cafeteria. O primeiro frio lembra que os ranhentos lá de casa ficarão de narizes assados logo, logo – eles e todas as crianças do mundo. Lembra bolinho de chuva e chimarrão (ou equivalente). Lembra quentão. Livros finalmente lidos! Lembra Game of Thrones e que “Winter is (finally) coming”. Lembra Frozen, Olaf e abraços quentinhos. Lembra bolsa de água quente e cheirinho de chá. O primeiro frio lembra que é hora chamar as amigas para a sala de casa e acender a lareira, ou chamar o gato e aumentar o calor do quarto. O primeiro frio lembra que a temperatura pode até cair, mas que os próximos meses merecem ser aquecidos com bons momentos, pequenos e grandes prazeres e suspiros com vaporzinho.

Pega o casaquinho e te joga.


Fim da sessão.

Antônia no Divã

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Antônia no Divã

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