Efemérides

O abraço do meu pai

É difícil chegar à vida adulta e não deparar-se com algumas características pessoais herdadas de nossos pais. Depois de anos de terapia dei-me conta que a maioria das discussões que explodiam entre meu pai e eu, eram acionadas pelas falhas que dividíamos.  Passado um tempo me analisando, comecei a entender que as nossas farpas, eram na verdade um sintoma do que os freudianos chamam de teoria da projeção. Basicamente a projeção é um mecanismo de defesa no qual os atributos pessoais de determinado indivíduo (eu) que são inaceitáveis ou indesejados por esta pessoa, são atribuídos à outra(s) pessoa(s) – no caso o meu pai. Tipo como colocar a culpa em alguém pelo seu fracasso. Você tira o próprio desconforto jogando ele lá pra grama do vizinho. Projeção.

E entendo um pouco mais sobre a projeção, comecei a aceitar que tudo que sempre nos levou a discórdia, era de fato muito do que compartilhávamos. A indisciplina dele bagunçava a minha. A minha ansiedade cutucava a dele. Nós nos pegamos inúmeras vezes alegando exatamente a mesma ideia, de formas diferentes, e em tom de desentendimento. Passado o tempo da minha adolescência rebelde, eu passei a ter uma necessidade de concordar mais do que discordar com o cara, e dada a evolução da minha análise, eu entendi que era muito mais fácil mudar a minha teimosia, do que a do meu pai. Ainda que tivéssemos passado muito tempo desbravando as águas de conflito, nós dois sempre estivemos um ao lado do outro enfrentando qualquer maremoto. Remando juntos, mesmo que um pensando bombordo enquanto o outro almejava o estibordo.

Dentre todas as nossas similaridades, uma divergência sempre foi gritante. Diferentemente do meu pai, eu sempre fui fã número um do abraço, do beijo, do carinho e do contato físico. Lembro-me do quanto sofri em Londres pela falta do calor humano brasileiro. Eu poderia tranquilamente ser uma daquelas pessoas que carrega um cartaz escrito “Abraços Grátis”. Mas no final, eu acabei me adaptando. O meu pai não, embora sempre tenha sido um cara queridão, sorridente e muito gente boa. E assim eu sempre me vi com dificuldade de cair no abraço do meu pai. Talvez ele fosse um eterno encabulado. Ou estivesse sempre com a cabeça preocupada. Ou mesmo penso que meu pai, o irmão mais velho de outros nove filhos, pudesse não ter tido muita chance no revezamento de abraços dos pais dele, os meus avós. Ou ainda poderia ser que seja uma coisa de época. Quem sabe quando o meu pai foi criado e educado, não era costume abraçar e beijar os seus rebentos.

Óbvio que quando eu era pequeninha, a primogênita da casa e toda bonequinha, nunca me faltaram mimos, mesmo do meu pai. Todavia, eu fui crescendo e durante boa parte da minha vida, eu aprendi a escutar uma expressão muito peculiar do meu pai: “ta-ta-ta-ta”. “Ta-ta-ta-ta” era o jeito do meu pai dizer que estava adequado e suficiente o tempo que eu o abraçava, como quem diz “ok, agora pode soltar”. Era como se ele estivesse com pressa de sair dos meus braços, ou desviar dos meus beijos babados. E eu sempre achei aquilo muito estranho, mesmo nós dois sendo tão parecidos. Eu nunca vi o desconforto dele como um problema pessoal comigo, muito mais como uma atrapalhação dele com ele mesmo. E ainda assim, sempre que possível eu tentava segurar meu pai no meu abraço um minutinho a mais. Recebia o conhecido “ta-ta-ta-ta”, ainda que atrasado, e então eu sabia que era hora de soltá-lo. Talvez o meu pai nem sonhasse o quanto eu calculava aqueles movimentos

Depois de adulta, eu comecei a pensar que talvez eu estivesse me tornando inconveniente com as minhas manhas e necessidades de atenção. A gente começou a trabalhar juntos, e eu passei a chamá-lo pelo nome ao invés de “pai”, por inúmeras razões que o mundo corporativo exige. Então eu me acostumei a abraçá-lo e beija-lo com rapidez e precisão, tentando evitar o “ta-ta-ta-ta” dentro da empresa. Essa pressa no abraço gradativamente escalonou para os nossos momentos de convívio social fora do trabalho.  Um ano ou dois se passaram, e os beijos acabaram cessando, e passamos a resumir nossos cumprimentos a encostar as bochechas, como dois pseudo-conhecidos fazem ao se encontram na rua. Nós dois finalmente estávamos parecidos em tudo. E eu, abrindo mão do “ta-ta-ta-ta” do meu pai, acabei abrindo mão dos abraços longos e dos beijos babados nele. Apenas nele.

Bom, aí veio a vida e levou o meu irmão, com todos os seus abraços. Abraços que meu pai desejou ter dado, sabido dar, sem vergonha, recato, cerimônia. Talvez naquele momento mais do que nunca, o meu pai desejasse que o pai dele tivesse o ensinado a abraçar mais vezes, mais forte, por mais tempo. Na semana passada, quando de novo eu ofereci a bochecha para o meu pai me cumprimentar, ele teve um rompante. Disse-me “por que você não me beija?! Por que só beija e abraça a sua mãe?”. Fiquei atônita olhando para ele, sem saber como explicar como chegamos naquele ponto. Resumi-me a ficar muda, beija-lo rapidamente, e partir a tagarelar sobre negócios, antes que eu aguasse a sala dele com o peso daquele momento. O meu pai só tinha eu de filha agora. Uma filha que havia desaprendido a receber e retribuir os abraços de pai que ele só tinha a mim para entregar.

Ontem, nos deslocamos para a minha cidade natal, com a difícil tarefa de nos despedirmos do meu tio, irmão do meu pai, e aquele que inspirou a doação de sangue que fizemos aqui no blog (O Corredor). Meu tio estava doente, cansado e sua passagem veio como um descanso merecido. A todo o momento durante o velório, eu olhava para os meus primos, filhos do meu tio, me perguntando quantos abraços e beijos, eles também, assim como eu, talvez tivessem desperdiçado. E agora não dava mais tempo. De nada.

Sabe, não há nada que nos faz pensar mais sobre a vida, do que a própria morte, isso hoje eu sei. E esse pensamento é tão sombrio, quanto esclarecedor.

Na cozinha da capela, quando finalmente consegui chegar perto do meu pai, ultrapassando a legião de carolas presentes com seus terços e orações decoradas, me joguei nos braços do homem sem nenhum constrangimento. Desabei chorando pelo meu tio, pelos meus primos, pelos abraços do meu irmão que tanto me fazem falta, e chorei pelos abraços que eu havia deixado de dar no meu pai nos últimos tempos.

Ele me segurou no abraço dele, e beijou minha bochecha demoradamente. E desta vez, ele não disse “ta-ta-ta-ta”.


Fim da sessão.

Antônia no Divã

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Antônia no Divã

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