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Minha mãe para presidente

Dentre as pessoas que conheci no meu mochilão pela Europa, uma mexeu profundamente comigo. O nome dela era Alisson, e entre uma cerveja e outra em um hostel em Roma, ela me contou que estava de férias do trabalho voluntário. A causa do trabalho voluntário dela foi o que me surpreendeu. A Alisson era parte de um grupo cuja meta era fortalecer a autonomia de mães africanas. Em resumo a ideia do projeto era relativamente simples: mães que tinham emprego e se sustentavam, alimentavam melhor seus filhos, os colocavam na escola, cuidavam da saúde da prole, e toda a sociedade era fortalecida desta forma. As mães criavam cidadãos mais educados e saudáveis, e consequentemente a África tinha uma chance de erradicar a pobreza, desnutrição, a AIDS, dentre outras pragas que disseminam sua população. A solução estava nas mães.

Óbvio. Como ninguém havia pensando nisso antes?

Não é de hoje que eu sei que as mães são heroínas dos tempos modernos. Quando eu tinha uns cinco anos, meu irmão mais novo se engasgou com alguma coisa, e já estava ficando roxo com tentativas frustradas do meu pai em desafogá-lo. Minha mãe tirou aquele bebezinho do colo do meu pai, e sem pensar duas vezes, chupou o nariz dele fortemente com a boca, desobstruindo as narinas dele, e deixando novamente o ar passar. Lembro-me de ficar chocada com o desapego, coragem e assertividade da minha mãe. Ela não apenas dava a vida, mas também salvava. Eu fiquei inebriada com tamanho poder.

Certa vez, a peça do meu grupo de teatro foi cancelada no dia da apresentação, quando eu já estava toda pronta, com meus longos cabelos trançados com lã de tapeçaria para me tornar a boneca Emília do Sítio do Pica Pau Amarelo. Corri pro meu quarto chorando em desconsolo. Meia hora depois minha mãe me chama da garagem, e lá estava toda a vizinhança em formato de plateia, pipoca para o bairro todo e um pequeno palco montado na calçada. Ela secou minhas lágrimas, beijou-me o rosto e disse “agora vai lá e arrasa”. Naquele dia eu decidi que ia ser quem eu quisesse, porque minha mãe acreditava na boneca Emília que havia em mim.

Eu sei, parece propaganda da Dove ou da Johnson & Johnson, mas não é. Eu tive um exemplo dentro de casa que me mostrou desde cedo que ia sempre me proteger (mesmo que isso envolvesse chupar o meu nariz) e que ia me dar apoio pra todo desafio que surgisse na minha vida. A minha mãe me fez uma cidadã consciente, nutrida e educada. Não que o meu pai não tivesse participado, longe disso. Mas na época, essa responsabilidade era da minha mãe.  E eu acredito que ela fez um ótimo trabalho, e que gostou, uma vez que encomendou mais dois rebentos quando já tinha dois criados.

Foi pensando no que a Alisson me disse sobre seu projeto na África, que pensei que talvez a minha mãe devesse tomar conta da presidência do país. Juro. Acho uma ótima ideia. Quem sabe assim os corruptos já estariam de castigo, implorando pinico, como eu fazia quando pequena. Uma vez roubei uma pedrinha quartzo de uma lojinha. A minha mãe não fingiu que não viu. Não disse que não sabia que aquilo estava acontecendo. Ela me arrastou de volta pra loja, e na frente de inúmeras pessoas tive que devolver o quartzo e pedir desculpas. Ela passou vergonha junto comigo, mas eu nunca mais peguei um apontador de um coleguinha sem pedir.  Foi horrível e eficaz. Como um remédio amargo.

Se a minha mãe fosse presidente, ela olharia pros malfeitores e diria “nós vamos conversar em casa”, aterrorizando a alma deles como fazia comigo quando eu aprontava em público. Eu gritava “não, vamos conversar AGORA, em casa não, por favor!!!”. O meu castigo, ela sabia, era a expectativa. Eu não podia lidar com não saber o que ela diria. Ela deliberadamente fazia de mim um peru de Natal – eu morria de angustia na véspera, e quando chegava em casa, o discurso não era tão duro quanto aquele que eu tinha imaginado.

Quando as obras públicas atrasassem, minha mãe ia pegar a pá e começar ela mesma, deixando com vergonha todo o resto que não o fez. A minha mãe odeia o “já vou”. Quantas louças eu deixei de lavar com o “já vou”, e depois fiquei me remoendo de culpa.

Com a minha mãe no planalto central, os hospitais iam estar sempre à disposição, pois mãe nenhuma deve sofrer a angustia da impotência de ter um filho doente nos braços. Ela ia ser justa com todos, porque afinal, coração e hospital de mãe, sempre cabem mais um.

A minha mãe, como professora idealista que é, ia tornar a educação acessível e divertida para todos, como fazia com os alunos dela. Ela ia cobrar da comunidade participação ativa na vida das escolas – ela me fez “Amiga da Escola” com 15 anos, quando dava aula de dança numa escola municipal. Fez-me responsável pela minha parte na educação dos outros, e agradecida por sempre ter tido acesso a minha.

Minha mãe ia escutar o povo porque entende que ela não sabe tudo, e que também está aprendendo. Ela não acha a administração dela é a prova de falhas, ela sabe que existe mães melhores e piores que ela, mas ela não deixa de tentar melhorar sempre porque “a gestão passada” ou “antepassada” era pior que a dela. A minha mãe também não ia deixar ninguém ficar falando mal do filho dela por aí. Nunca!

A chefa lá de casa, seria uma ótima chefa de estado porque entende que o tapa na bunda é tão importante quando o carinho na cabeça. Que tem hora para o tema de casa, e para a televisão. E que “a vida não é só carnaval, Antônia!”.

Talvez a solução do Brasil, seja a mesma proposta pela Alisson na África: mães no poder. Sim, a nação nas mãos de alguém pronta pra corrigir e educar, errar, assumir que errou, e depois acertar, doa o que doer. Afinal, mãe costuma saber de tudo, mesmo quando estão erradas. Quem sabe o que o país precise mesmo é de uma Mãe de Estado – nem presidente, nem presidenta, nem ditadura, nem democracia – mas uma mãecracia. Com castigo e carinho. Colo e incentivo, para que este país seja o filho que pode e merece ser, daqueles de deixar qualquer mãe orgulhosa.

Fim da sessão.


♥ Nota para a minha mãe: Neste domingo, como em muitos outros, quero de novo agradecer a presidente lá de casa, que já colocou ordem em muita crise, já segurou a economia na ponta do lápis, orquestrou revoluções adolescentes, e deu asas para ganhar o mundo. Você tem para o resto da minha vida, o meu voto irredutível. Saiba que o dia que eu me candidatar ao teu cargo, espero ter no mínimo coligação com teu partido – pois eu acredito incondicionalmente nele.

Antônia no Divã

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