Crônicas

Passagem de ida pra Terra do Nunca

em
16 de junho de 2015

Dou-me conta de que eu sou adulta, na mesma proporção do tempo que fico exposta a crianças. Algumas horas com meus irmãos mais novos são inofensivas. Brincamos juntos e tudo é muito natural. Basta um final de semana inteiro passar, que me pego freneticamente corrigindo os dois a cada 5 minutos. “Vamos juntar esses brinquedos”. “Larga a camiseta do teu irmão.” “Murilo, dá pra parar de assobiar por 1 minuto?”. “Vai comer sim, ou tua bunda vai esquentar.” “Não aperta o cachorro.” “Murilo, que mania e essa de rebolar agora?” “Mateus, solta as tintas e vem já lavar as mãos.” “Sim, menino também pode fazer ballet, mas o papai prefere que vocês façam futebol.” “Parem de se estapear.” “Não, você não sabe tudo coisa nenhuma.” Afe! Que canseira. Eu não via a hora de chegar a segunda-feira. Eu parecia uma megera.

Cheguei segunda-feira para trabalhar do mesmo jeito de sempre – não parecendo, mas sendo uma megera. Espalhando simpatia (ironia aqui) e uivando por café. Às vezes penso que deveria existir uma lei que lhe assegurasse o direito de não conversar com ninguém antes da primeira xícara de café no primeiro dia da semana. Estava terminando de me servir quando o Carlos entra na sala, cumprimenta todo mundo e começa a rodear a minha mesa, como faz sempre que quer chamar a minha atenção. Eu o ignoro de proposito, pois como adulto que ele é, poderia muito bem conversar comigo sem aquele ritual infantil. Ele pergunta se pode falar comigo, e eu respondo que sim com a cabeça, ainda encarando a tela do meu computador. Ele chega mais próximo e pergunta – “Pode ser na sala ao lado?” Eu me irrito com a formalidade e viro para fulminá-lo com os olhos, apenas para ver que os seus estão vermelhos. O Carlos havia chorado.

Na sala ao lado, mal fechei a porta para ele jogar-se nos meus braços. 1,80m de homem debulhado em lágrimas. Ele anuncia o motivo, havia sido demitido e queria se despedir. “Queria te dar tchau, pois sei que tu sempre te preocupaste comigo. Orientou-me, pediu pra eu não brigar e não me expor tanto, mesmo não sendo a minha gestora. Aprendi a te respeitar, então…” – ele funga profundamente – “Só queria mesmo é agradecer e ….” e não consegue terminar a frase. Coloca a cabeça nos meus joelhos, e chora, pelo que imagino terem sido horas. O Carlos era apenas um dos nove que viriam a ser demitidos naquela segunda-feira. A crise havia encontrado nosso CNPJ e mandando lembranças. Assim como todas as empresas em território nacional, a nossa precisava reduzir para sobreviver. A situação por si só é horrível, para quem vai, e para quem fica. E isso para qualquer funcionário. Acontece que eu não sou qualquer funcionária. A empresa que agora fazia o Carlos chorar e indagar-se sobre o futuro, era a empresa do meu pai. E eu, aquela que eles chamam de a “filha do homi”.

Ser herdeira em tempos de prosperidade é uma coisa. Ser herdeira em tempos da maior crise econômica da história da minha carreira, é outra. Não existe MBA que te prepare para não sentir o gosto amargo de uma recessão como esta. E quando você sabe que não pode fazer muito para ajudar, é pior ainda. O sentimento de impotência é tão sufocante, que é impossível não fazer o mesmo que o Carlos – transbordar. Aproveitei que era horário do almoço, me escondi num canto do pátio onde ninguém podia me ver, enfiei os fones de ouvido e coloquei a musica mais triste que achei na minha playlist para então deixar as lágrimas rolarem. “Espero que quem fique na empresa, honre o seu lugar aqui dentro” – disse o Carlos ao se despedir minutos antes. E eu não consegui encará-lo para dizer que eu não queria estar ali. Eu não honrava o meu lugar. Eu queria que tivesse sido eu no lugar do Carlos. Mas herdeiras não assinam suas rescisões e saem pela porta da frente numa boa – isso eu aprendera há um ano, quando tentei, sem sucesso, seguir outro rumo que não dentro do meu “império”. E agora eu estava lá, dentro de um castelo de cartas, vendo uma a uma cair.

Eu nunca quis tanto voltar a ser criança como nesta semana. Eu queria sentar no colo do meu pai e falar sobre os meus medos, tendo a certeza que ele ia ter resposta pra tudo. Mas ele não tem. Talvez nunca tenha tido, mas agora eu sei e isso muda tudo. Eu não queria um diretor. Eu queria só meu pai. De fato o que eu precisava no momento era uma passagem só de ida para a Terra do Nunca, cuja economia não tem crise, porque lá não tem economia mesmo. Onde não há desemprego, taxa de juros, IR, ISSQN, ICMS, ih meu Deus do céu. Queria estar lá desviando de piratas, e não dos boleiros do mercado. Queria me preocupar com sereias, e não com o sindicato. Queria pó de asas de fada, e não um faturamento reduzido a pó. Eu trocava qualquer tucano, lula, raposa e traíra por um crocodilo. Por que ninguém disse que crescer ia ser tão complicado?

Como seria bom ser a Wendy e oferecer meu dedal/beijo ao Peter Pan, sem os joguinhos de sedução dos adultos.  Queria que “Meninos Perdidos” fosse um grupo de crianças rebeldes que decidiu não crescer, ao invés de ler sobre meninos cuja infância foi perdida na página policial do jornal. Queria tocar flauta para as flores. Sentir a chuva, e não apenas ficar molhada. Ter pensamentos positivos que me fizessem voar por um mar de estrelas. Na verdade, nesta semana, somente os pensamentos positivos já estariam de bom tamanho. Será que a maturidade ficou tão cinza, que tiveram que inventar livro de colorir para adultos?

Eu sei que não querer crescer ou desejar voltar a infância pode ser considerado escapismo ou imoral. Mas essa semana eu queria voltar a minha infância. Eu queria mais tempo sem me preocupar com o tempo passar. Exatamente como as crianças fazem… exatamente como o Mateus e o Murilo fazem.

Então meninos, esqueçam tudo que a mana disse neste final de semana. Não guardem os brinquedos, brinquem! Não larga o teu irmão, nunca. Murilo assobia as canções que tu quiseres que a mana vai te escutar e cantar junto. Comam porque é bom. Apertem o cachorro porque no fundo é disso que ele gosta. Pode rebolar, a mana rebola com você. Mateus, não larga estas tintas, vamos colorir juntos. Sim, menino pode fazer ballet, piano, caratê, tricô, e o papai vai ter que entender. Parem de se estapear, se abracem. E claro, vocês sabem de tudo. Mais do que qualquer adulto que eu conheço, vocês sabem mais eu. Vocês sabem o segredo da felicidade plena, aquele que por vezes a gente esquece depois que cresce. E se vocês souberem o caminho da Terra do Nunca, não se esqueça de mim.

Eu vou junto num piscar de olhos e dois pensamentos positivos.

“A segunda estrela à direita e então direto, até amanhecer”.


Fim da sessão.

Palavras-Chave

9 de junho de 2015

23 de junho de 2015

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16 Comments
  1. Responder

    sonia pimenta

    26 de julho de 2015

    gosto e compartilho suas idéias e devaneios.

    • Responder

      Antônia no Divã

      4 de agosto de 2015

      Vamos juntas pra Terra do Nunca, Sônia! 🙂

  2. Responder

    Jubi

    23 de junho de 2015

    Lindo!! Amei! Impressionante com é bom ter essa sensação de que tem outras pessoas que pensam exatamente como vc…Tem outra citação legal de Peter Pan: I do bealive in fairies! I DO!

    • Responder

      Antônia no Divã

      29 de junho de 2015

      And I do, I do! beijocas

  3. Responder

    Evandro

    16 de junho de 2015

    Sim. Vender coco na praia é apenas romântico. A realidade é bem mais embaixo.
    Assim como você, eu e muitas outras pessoas tivemos nossa infância para viver os momentos de Wendy e Peter Pan, também passamos por situações em que desejamos pelo menos nos permitir tirar os pés do chão e alçar voos para um mundo onde possamos viver mais tranquilo.
    Como a Dai comentou: ” ir na padaria comprar pão com a remela no olho ainda e sair na rua sem se preocupar com que roupa estou pq “vai que encontro algum conhecido” , não que por lá seja a Terra do Nunca, mas poderíamos viver mais tranquilamente, não é mesmo! Já seria magnífico.
    Como o ser humano é bem diferente do conceito que temos dos animais (irracionais), existe uma sentença para cada um, um comportamento, que por vezes é compartilhado por um algum grupo, (mesmo assim existem diferenças entre cada membro), gostaríamos que a convivência entre todos nós pudesse ser mais” Zen”. Você não acha?
    A realidade do mundo corporativo é muito cruel.
    Muitas vezes eu fico chateado com alguns comportamentos que são implícitos ao que aprendemos em nossa vida. Somos fruto disso.
    Mas não só na posição em que você se encontra na empresa, mas em qualquer outra situação, não é nada agradável ver tudo isso acontecer. Ainda mais se as pessoas não tem uma qualificação que a possibilite se colocar novamente. Fica mais difícil.
    Veja bem. O endereço eu não tenho não, mas fazer com que o caminho seja mais bonito, isso eu faço.

    Abraço.

    • Responder

      Antônia no Divã

      18 de junho de 2015

      que lindas palavras, Evandro. Precisamos trocar de lugar imediatamente! hahahha. beijocas

  4. Responder

    Dulce

    16 de junho de 2015

    Lido com duas crianças em tempo integral e com elas volto a ser criança. Ir para a Terra do Nunca é fácil para quem mora em Londres, como eu, lida com crianças como eu e tem imaginação, como eu… É só olhar as sacadas das casas, lembrar da estória e pensar positivo. Afinal, Londres é a cidade onde Peter Pan nasceu!!!!

    • Responder

      Antônia no Divã

      18 de junho de 2015

      Na falta de uma passagem para a Terra do Nunca, uma pra Londres já me serve, Dulce. 🙂 <3 hahaha. Beijocas, querida!

  5. Responder

    Mirna Nunes

    16 de junho de 2015

    Amo seus textos…Esse me fez até chorar !!! O amadurecimento nos presenteia com tantas coisas boas mas endurece um pouco nosso coração e nossa sensibilidade infantil….ainda bem que temos mecanismos de defesa que, às vezes, nos fazem voltar no tempo ! Bjos.

    • Responder

      Antônia no Divã

      18 de junho de 2015

      Ai Mirna, minha querida. Você, minha mãe e uma amiga me mandaram mensagens com lágrimas. Espero que sejam lágrimas bem-vindas, daquelas de “lavar a alma”. Às vezes a gente só precisa chorar como criança mesmo. beijocas

  6. Responder

    Nilza

    16 de junho de 2015

    Confesso que a cada sessão fico mais tiete…

    • Responder

      Antônia no Divã

      18 de junho de 2015

      Gentileza sua, Nilza. Obrigada pela companhia por aqui! beijocas

  7. Responder

    Daniele

    16 de junho de 2015

    É, tá puxado… Minha irmã tbm perdeu o emprego, assim como outras 140 pessoas onde ela trabalhava.
    Eu vou levantar âncora já já…
    Se tiver lugar pra Terra do Nunca… Tô dentro! =/

    • Responder

      Antônia no Divã

      18 de junho de 2015

      Vamos todas juntas, Daniele. Chama a sua irmã! Seria tão bom. Seremos as “meninas perdidas” – ok, confesso que na minha cabeça esse nome não soou tão bizarro quanto escrito. hahaha

      • Responder

        Daniele Rodrigues (@danielesr_)

        18 de junho de 2015

        Ela com certeza está dentro tbm!
        Meninas perdidas pode soar estranho mesmo na cabeça de alguns.. hahahah
        ps: se não tiver para a terra do Nunca, serve Londres para mim tbm! 🙂

        • Responder

          Antônia no Divã

          18 de junho de 2015

          #partiuLondres

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Aline Mazzocchi
No divã e pelo mundo

De batismo, sim, Aline. Mas eu precisei do codinome Antônia - do latim "de valor inestimável" - para dividir minhas sessões públicas de escrita-terapia. O que divido aqui é o melhor e o pior de mim, tudo que aprendi no divã e botando o pé na estrada. Não para que dizer como você deve ver a vida. Mas para que essa eterna busca pelo auto-conhecimento, não seja uma jornada solitária, ainda que pessoal e intransferível. Então fique a vontade pra dividir o divã e algumas boas histórias comigo. contato@antonianodiva.com.br

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