Peguei o rumo de São Paulo com objetivo de fugir. Claro, eu tinha outros compromissos na capital paulista, mas a ideia central era que eu precisava de um tempo fora de casa. Dar umas férias para a cabeça, achar refúgio para o coração cansado. Queria distância da violência do meu estado, que passou a ser destaque nacional na arte das atrocidades. Precisava renovar a fé no ser humano. E por isso, decidi fugi para outras terras.
Era um domingo de clima gentil nas redondezas do Beco do Batman. Respirava aliviada por sentir a doce alegria de andar a pé pelas ruas, sem estar completamente tensa com a possibilidade de ver meus pertences arrancados de mim. O colorido dos grafites era um abraço gostoso na minha alma de artista. Uma mesa na calçada da peixaria mais tradicional do bairro era tudo o que eu precisava para um almoço preguiçoso com as amigas. Aquele momento tinha uma tranquilidade que há dias não vivia. O céu estava azul, a cerveja estava gelada, e pequenas folhinhas de árvore aterrissavam sobre os meus ombros e cabeça embaladas pelo vento morno da primavera.
De repente, a tranquilidade do domingo é ceifada pelo som agudo de uma moto. O motociclista derrapa na água de uma imensa poça na esquina, e cai. À uma pequena distância de onde estava sentada, vejo o seu corpo encontrar o asfalto e por ele deslizar por alguns metros. A moto seguiu acelerada sem motorista, subiu a calçada contrária, e parou somente depois de colidir com outra moto estacionada. O motorista ficou deitado por alguns instantes, enquanto todos nós observávamos a cena em choque.
Enquanto a maioria apenas observava, um pequeno grupo se movimenta. Surgem alguns médicos que orientam o motociclista a não se mexer, pois poderia ter fraturado as costas ou o pescoço. Eu junto os pertences do rapaz, enquanto ligo para a SAMU, ainda que não faça ideia do endereço. Informo-me, oriento a SAMU e peço urgência. Uma hora e meia se passam sem nenhum sinal de socorro. Neste tempo converso com o Cícero, o acidentado, Aline e Bruno os jovens médicos que mantinham a cabeça do Cícero imóvel, entre outras pessoas que surgiam sugerindo maneiras de ajudar. Uso o espelho quebrado da moto para desviar o trânsito, já que as pernas do Cícero estavam muito próximas ao movimento da rua, e não podíamos deslocá-lo.
Durante a longa espera, curiosos se aproximam e montam suas teorias sobre as razões do acidente, sem qualquer informação. Outros mais preocupados informam constantemente que já ligaram – pela milésima vez– para a SAMU cobrando uma ambulância. As minhas amigas me alcançam os bolinhos do almoço que eu planejei comer sentada, almoço que agora foi substituído pela minha tarefa de guarda de trânsito. Um estranho se aproxima com uma garrafa de Heineken, e serve meu copo: “é o mínimo que posso fazer por ti, plantada aí neste sol”, agradeço com um sorriso. Outros jovens médicos aparecem oferecendo seus serviços – aliás, eu nunca vi tanto médico brotar de uma única peixaria num domingo. O Cícero é um cara de sorte, apesar da SAMU.
Faço piadas que o Cícero, mesmo deitado há mais de uma hora no asfalto, não resiste uma risada. Canto a marcha fúnebre em tom sarcástico, e apoio o copo de cerveja em seu joelho tirando sarro de sua posição vulnerável. E eu sou sempre aquela que vai fazer piada nos momentos mais inadequados – velórios, casos de tensão, dramas familiares. Não por desrespeito, nunca, acho que é um mecanismo de defesa do meu nervosismo, ou ainda uma vontade de lembrar as pessoas a minha volta, que eventualmente, quando tudo passar, ainda vamos conseguir sorrir. Eu sempre me comprometo em elevar a moral do ambiente, por mais dramático que ele seja. Acho que é um talento, ou talvez o meu pior defeito. Mas eu nunca resisto a ele.
A SAMU finalmente chega, seguida de uma unidade dos bombeiros. Palmas de toda a peixaria, que em polvorosa dá gritinhos de que variam entre “uhu” e “aleluia” e “já não era em tempo”. Os atendentes da SAMU verificam os movimentos de Cícero e seus sinais vitais. Informam que não sabem para qual hospital poderiam levá-lo, pois todos estão lotados, e Cícero abre mão de seu lugar na ambulância. A bem da verdade, ele teria se levantado e ido embora há muito tempo, não fosse o pedido dos médicos que prontamente o atenderam após o tombo. Entrego os pertences ao Cícero, peço o seu contato para verificar seu estado mais tarde. Ele agradece: “Sou sortudo de cair no meio de pessoas como vocês”, me dá um abraço e vai embora.
Na saída, Cícero recebe represarias de alguns espectadores na calçada. O fato de ele ter optado em não ir para o hospital, revoltou algumas pessoas que assistiram a espera pela ambulância, e o comprometimento de quem o atendeu durante este tempo. Ainda que não tivessem levantado a bunda da cadeira para fazer qualquer coisa. Termino o meu almoço, e na saída sou abordada pelo mesmo cidadão que xingou o Cícero. “Fica a dica pra você aí… da próxima vez, não fica dando de otária ajudando mané, aí não… o cara fez você e os outros de mó otária”. Olhei bem na cara do maluco, incrédula da “dica” que estava levando. Respirei fundo, e contei até 10 e então falei sorrindo :
“Eu não fiz por ele. Eu fiz por mim. Porque se um dia acontecer algo comigo, espero ter a sorte de estar perto de alguém como eu, uma otária-altruísta e bem intencionada, do que rodeada de gente como você, que é simplesmente um otário.”
Voltando do almoço, me peguei pensando sobre tudo aquilo do que eu fugia, nesta temporada em São Paulo. Em especial, a maldade humana. E que de fato, ela existe em qualquer lugar, e em todos nós. Alguns optam em praticá-la, ainda que através da omissão. Agora imagina se todo ato de bondade for visto como burrice? Ficaremos cada vez mais sozinhos e isolados, e isso me parece um futuro horrível para a humanidade. Eu prefiro ser uma ignorante na maldade. Prefiro ser uma otária. Mó-otária. Mas uma otária que dorme bem à noite, e que espera nunca se sentir sozinha quando mais precisar.
Fim da sessão.
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