Crônicas

Alô, é do céu?

mediunidadeA comunicação sempre foi uma necessidade intrínseca a raça humana. Não importa se através de barulho de tambores ou áudios de whatsapp. Somos seres sociais, e nos expressamos através da comunicação. É com ela que expomos nossas ideias, verbalizamos nossas angústias, demonstramos nosso afeto. Não existe nada mais reconfortante do que uma ligação para a própria mãe num momento de crise. Poder receber uma mensagem de uma amiga querida que mora longe. Ganhar um emogi de coraçãozinho de alguém especial. Comunicação é parte da vida, isso é uma certeza.

Mas o que acontece com a comunicação quando uma parte da conversa sobe para o céu?

Sabe, eu nunca me ocupei muito com os mistérios do pós-vida. Talvez porque provavelmente eu estava ocupada demais vivendo, ou porque todas as pessoas de quem me despedi tinham a morte como um merecido descanso, seja após uma vida longa, ou por conta de uma doença desgastante. Mas tudo isso mudou quando o meu irmão faleceu. O Leonardo foi embora subitamente, e com ele também foi a nossa comunicação. Sim, porque comunicação exige necessariamente duas fontes – uma emissora e outra receptadora – e um canal de comunicação. De uma hora para a outra eu passei a sentir não apenas o silêncio de uma das fontes, como também a inexistência de um canal de comunicação.

Pouca gente fala abertamente sobre como lidar com o luto, então as lições são todas experimentais, pessoais e dificilmente são transferíveis. O que percebi na minha luta e luto, é que após uma despedida significativa a gente busca urgentemente resolver duas angustias básicas: tentar entender o que acontece do outro lado da vida e desesperadamente achar uma fonte de contato com o andar de cima. Não importa a sua crença. A maioria das pessoas dedica boa parte do seu luto procurando uma prova de que pode existir o contato com quem já se foi, simplesmente porque o silêncio da perda é ensurdecedor.

No início a gente tenta enxergar sinais em todo lugar. Frequenta centro espírita, tenta hipnotismo, joga búzios, aprende a ler borra de café no fundo da xícara. Tudo ou qualquer coisa para receber um “e aí dusmeu!?” do lado de lá. E a saudade, acredite, ela sabe ser combustível para esta empreitada. Procuramos ajuda de guias espirituais, profetas iluminados, sacerdotes xamânicos, mas tudo que a gente realmente queria era uma boa telefonista com a porra do número do céu.

Outro efeito natural desta busca é o aparecimento de mensageiros espontâneos com notícias urgentes da pessoa que foi embora. Eu sei que existe uma comoção pública pós-morte, e que ela é sincera e cheia de boas intenções. Mas essa intervenção é também uma audível linha cruzada nesta desesperada busca por contato. Quando o meu irmão partiu, recebíamos mensagens diárias dele, através de pessoas conhecidas e também de completos estranhos.

Era recado de que estava tudo bem lá em cima, outra hora eram alertas desesperados de desconforto, certas vezes era alguma orientação sobre bens que passaram a ser inúteis, respostas de perguntas que nunca fizemos, a atualização de status de relacionamento, ou seja, todo tipo de notícia quentinha direto dos portões do céu. Era como se a única preocupação do meu irmão não fosse alcançar a elevação divina. Não. Parecia que tudo que ele fazia no paraíso era passar o tempo todo conectado no “WhatsHaven” catando alguém para mandar novidades e memes para a família.

Como já falei nesta sessão, sei que a intenção das pessoas é sempre das melhores. Mas esse excesso de certeza na passagem de mensagens nunca teve sentido pra nós. “Teu irmão mandou te dizer isso ou aquilo” – eu ouvia com um sorriso amarelo e agradecia o recado, tendo a certeza de que o meu irmão jamais diria algo do tipo.

Acontece que mesmo sem sentido, essas mensagens despertam todo tipo de sentimento na gente. Certa vez recebemos um recado de que o Léo estaria “preso” no quarto dele, e precisávamos urgentemente libertá-lo. A intenção era ajudar. Mas você pode imaginar a tortura de uma mãe que sempre moveu mundos e fundos pela cria, não poder concretamente ajudar um filho “em desespero”? Ou sequer ter certeza do seu bem estar?

Outra vez uma amiga que também perdeu um irmão me sugeriu visitar uma vidente de sua confiança. Contou-me animada que conseguia se comunicar com o irmão falecido, e que os dois conversavam toda semana. Fiquei imaginando a possibilidade de falar com o Leonardo, e temi querer me mudar pra casa da tal vidente na intenção de poder utilizar seus poderes sempre que meu coração ficasse com saudade. Neguei a oferta da minha amiga, por saber que não podia confiar em mim com essa chance.

E desta forma e desde a despedida do Léo, as pessoas seguem sugerindo orações, atitudes e mandingas que garantem contato com o além, esquecendo que junto com a ajuda, também se entrega uma expectativa. Expectativa de que vamos ouvir a voz de quem amamos. Expectativa de que veremos seus olhos brilhando em nossos sonhos. Expectativa de QUALQUER contato. E a gente sabe, expectativa é a mãe da merda. Ela é barulho quando deveria haver silêncio. É linha cruzada na busca de uma ligação.

“Alô, é do céu?”

Então aqui em casa a gente resolveu trocar de número. É. A gente não recebe mais mensagem de terceiros, e também não aceita mais ligação a cobrar-atitudes. Nós resolvemos preservar o silêncio, e os momentos de contemplação da vida, e da saudade. Gastamos longos interurbanos olhando as estrelas, sentindo o carinho do vento. Ouvimos passarinhos que passaram a nos visitar. Recebemos amor pelas asas de borboletas que insistem em entrar em casa e pousar em nossos ombros. Em momentos muito importantes a gente recebe uma videoconferência nos nossos sonhos, e mensagens tão claras quanto à luz do dia.

Às vezes quando eu fico muito ansiosa, eu escrevo uma carta, um bilhete. Tem dias que eu posto uma música no Facebook dele, ou uma foto do cachorro que agora mora conosco. Meu pai faz a manutenção da jazida semanalmente, enquanto conta as novidades e conversa inclusive com os vizinhos das gavetas ao lado. Minha mãe fala com as fotos, reza muito. Meus irmãos acendem velas na sacada e “meditam” pro mano. Alguns amigos do Léo me mandam mensagens como se fossem pra ele. Você pode dizer que isso é muito triste, ou até loucura da nossa parte. Mas como disse, comunicação é parte da vida, então a gente segue reinventando a nossa como dá.

E na medida do possível a gente recebe sinais de volta. Porque a única certeza que tenho é quem ama, não manda recado. Basta desligar o barulho, ficar em silêncio, prestar atenção e ouvir com o coração. O outro lado sempre atende. Porque a ligação com quem a gente ama, nunca termina.


Fim da sessão.

ps: Que fique registrado todo o meu respeito a quem trabalha sua mediunidade para ajudar na saudade alheia. Minha dica apenas é, antes de passar recado, perguntar como a pessoa está e se ela quer que seja transferida a ligação. Acima de tudo, todo meu respeito a quem tem saudade.

Antônia no Divã

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