Quando eu tinha 13 anos meu pai teve a crueldade de mudar de praia. Imagine a minha indignação pseudo- adolescente, mudar de praia! A praia com todos os meus amigos. Aquilo era o fim do meu verão. Tudo por conta da invasão argentina, naquela época em 1990 e poucos, em que eles tinham todos os pesos do mundo pra invadir Santa Catarina. Meu pai não queria ter que acordar às 5h00 da manhã pra disputar um lugar para o guarda-sol. Ora, que egoísta!
E de lá partimos, para outro destino, de mala, cuia e trailer. A praia que meu pai escolheu era do outro lado da Ilha, e imensamente menos popular que a minha antiga praia. Ou seja, pouca ou nenhuma gente aparecia na minha nova praia, para o delírio do meu pai, e para o meu desespero. As poucas crianças e jovens que existiam, se divertiam jogando vôlei. E eu era péssima em vôlei. Em um final de tarde, a convite de um dos meninos que morava ali perto, ensaiei alguns saques e manchetes. Falhei majestosamente. Lembro-me de que em uma tentativa desastrosa de catar a ultima bola do jogo me lancei contra um arbusto, que obviamente não me segurou. Acabei o jogo soterrada pelas folhagens. Uma mão me puxou pra fora da cerca viva, tirou um galho da minha cabeça, e disse “Oi. Você tá bem?”. Balancei a cabeça envergonhada pensando que estragara a única chance de ter amigos naquele verão. “Vem. Vamos tomar um banho de mar, não tem nada que ele não cure. Ah, eu sou o Tadeu e você?”, “Antônia” – respondi com meu primeiro sorriso de janeiro.
Aquele verão passou rápido. O Tadeu tratou de me apresentar a todos os seus amigos e amigas, e eu finalmente tinha uma nova turma. A gente brincava de enterrar o meu irmão mais novo na areia. Mergulhava no trapiche. Comia picolé e pastel de camarão. A noite, arriscávamos “umas saídas” na praia vizinha que era mais animadinha. O Tadeu tinha que me entregar pro meu pai no meu trailer até às 23h. Mas em inúmeras vezes nos apresentávamos às 23h e ficávamos na beira da praia – sob os olhos vigilantes do meu pai de lá do trailer – conversando até a lua deitar no mar. O Tadeu era diferente. Os meninos de 13 anos não eram nada como o Tadeu. Eles oscilaram entre tentativas de me beijar ou de me acertar com alguma coisa. O Tadeu não. O Tadeu era genial. Ele era gentil. O Tadeu se tornou o meu primeiro e melhor amigo do sexo oposto. Foi para ele que eu contei detalhes sobre o meu primeiro beijo em um menino mais velho, de 16 anos! Detalhes é um exagero, já que foi tão rápido que eu quase não vi acontecer. Sei que o menino enfiou a língua na minha boca e eu saí correndo. O Tadeu achou graça. Mas não riu de mim, como o resto da turma fez.
Quando chegou o final do verão, me despedi do Tadeu com lágrimas nos olhos. Prometemos escrever durante o ano. Cartas. Daquelas que você guarda até a idade adulta. Longas cartas sobre futilidades e saudades. Notícias da escola e desejos de verões eternos. Eu contava os dias para Janeiro. E felizmente ele sempre chegava, e com ele, o Tadeu. E assim nós dois fomos crescendo verão a verão juntos. As brincadeiras foram substituídas por festas. Os picolés pelas primeiras doses de álcool, Gudang Garam e lança perfume. Trocamos alguns membros da turma por outros mais hard-core, como a Mariana. Tudo o que eu tinha de tímida a Mariana tinha de bem resolvida. Além disso, ela causava um temor constante em mim pela agressividade óbvia que sua pequena estatura transpirava. “Calma, Antônia. A Mariana não vai te machucar. E você vai querer ela do seu lado numa briga”, ele falou rindo.
Com a chegada da minha maioridade passei a dirigir com mais frequência com destino a Santa Catarina. Inventava toda e qualquer desculpa para encontrar o Tadeu, e agora também a Mariana. Eu estava especialmente animada com aquele final de semana de novembro, pois o Tadeu iria me apresentar à namorada dele – primeira menina que eu o veria beijar, nos nossos muitos anos de amizade. Entretanto e para a minha surpresa, antes que eu chegasse à ilha da Magia os dois já haviam terminado.
Fomos à festa que estava programada para aquele final de semana mesmo assim. Em um avançado momento alcoólico da festa, eis que surge da multidão uma loirinha ouriçada pra cima da Mariana e de mim. “Esse bosta que vocês chamam de amigo, esse merda, prefere ficar com as amiguinhas dele, a ficar comigo!” – entendi rapidamente que aquela era a ex do Tadeu. “Olha minha filha” – tentei manter a calma enquanto segurava na coleira da Mariana que já estava com os punhos fechados em direção à loirinha – “o que o Tadeu tem com a gente é completamente diferente do que vocês têm. Não tem nada de maldade. Fica tranquila que ele não come ninguém aqui”. “Aé” – disse ela com ar de raiva – “eu posso dizer a mesma coisa deste UM ANO de namoro com ele!”. Larguei a Mariana. A loirinha merecia umas bofetadas ao menos pela indiscrição.
No banheiro discuti longamente com a Mariana, que insistia em perguntar pro Tadeu se ele era ou não era gay. Disse que ela não tinha direito de perguntar nada. E que na hora certa ele falaria com a gente. E o pacto se cumpriu, por todos os anos que seguiram depois daquela festa. Vi o Tadeu beijar várias meninas. Se justificar inúmeras vezes pros amigos “machos” porque não tinha comido a mina “A”, e que mina “B” não tava mesmo afim. Quando o assunto virava piada, eu virava um pitbull com raiva. E botava um a um dos machões em seus devidos lugares. Era inútil, entretanto, fazer o Tadeu se sentir melhor com aquilo. O Tadeu, aquele amigo que eu mais amava, seguia como as pérolas dentro das ostras que caçávamos em nossa juventude. Fechado, dentro de duas conchas.
Com o tempo, me afastei geograficamente do Tadeu. Fui pra Londres. Ele pra São Paulo. Quando voltei corremos ambos para Florianópolis, e nada havia mudado. Eu ainda era a menina que ele havia tirado de dentro do arbusto. Ele, todavia, seguia dentro da concha. O Tadeu então me contou que estava indo morar na Cidade Maravilhosa e que eu devia visitá-lo. Combinamos que iria em alguns meses, depois que ele se ajeitasse.
O Rio veio e com ele uma surpresa. O Ricardo. Quando o Tadeu apareceu para buscar as minhas duas amigas e eu para um passeio, no banco da frente, ao lado do Tadeu, o meu Tadeu, havia um Ricardo. Minha primeira reação foi de choque, que eu disfarcei com alguma piada. Seguimos o dia com o Ricardo fazendo a maior parte das apresentações “Aqui neste lugar nós gostamos de jantar”; “aqui é onde eu trabalho, o Tadeu adora aquele sanduíche da esquina”; “Tadeu, a gente nunca levou nossas visitas naquele museu novo no Leblon né?”. “Nós, nossas”. Todos os pronomes possessivos no plural. “Qual a natureza da relação de vocês?” – vomitei do banco de trás. (PUTA QUE PARIU! EU DISSE ISSO EM VOZ ALTA??!! Merda! ). “Não, ahn… eu quis dizer, de onde vocês se conhecem?” – corei o rosto todo. “Sabe Ricardo, a Antônia é minha amiga mais discreta, como você pode ver” o Tadeu falou, rindo um riso folgado e sem preconceitos.
Nada mais se falou sobre aquilo. Nem sobre a minha pergunta, nunca respondida. Já de volta a minha casa, enviei uma mensagem inquieta ao Tadeu “O Ricardo é teu namorado? Sabe, não vai mudar nada entre a gente. Só quero te ver feliz.” Ele respondeu prontamente – “Pois fique feliz. Você ainda vai ser madrinha”. Surtei. Meu coração bateu com todas as cores do arco íris. “Pois trate você de arrumar o sofá” disse a ele, “mês que vem estarei aí pra conhecer melhor o outro noivo”.
Passei quatro dias na companhia dos dois. O conforto não veio automático. Óbvio. Nunca tive problemas com a homossexualidade. Sempre achei Soho – o bairro mais gay de Londres, o meu preferido e mais festivo. Mas aquilo era diferente. Aquilo era sério. E eu também entendi que precisava de tempo para me educar. Conversamos muito, e entendi melhor como tudo aconteceu. Perguntei coisas que não deveria, como a inadequada curiosa que sou. O Tadeu respondeu tudo com polidez. Conheci e passei a admirar o Ricardo. Mais do que isso, conheci o Tadeu fora da concha. Fora do armário. E ele não era mais gay. Ele era simplesmente mais feliz.
No auge da minha balzaca, nunca-nunca eu havia olhado para alguém do jeito que os dois se olhavam. E com a minha bagagem afetiva pagando extra no aeroporto do amor, eu sabia que aquilo era muito raro. A primeira pergunta que me veio na cabeça foi a mais óbvia. Se é tão difícil achar o amor, quem nesta vida tem direito de dizer que isto é certo ou errado? Enfureci-me com o mundo. Não podia conceber que alguém ia querer (ou ter coragem), por motivos religiosos, educacionais, sociais ou legislativos, de impedir o amor de acontecer.
E foi assim que o meu coração saiu do armário, junto com o Tadeu. Não porque sou gay, não. Eu gosto de piroca tanto quanto o Tadeu, hoje sei (desculpe o meu francês). Mas porque a causa dele passou a ser minha também. Porque se um dia eu encontrar um amor, lindo e verdadeiro, sendo ele uma Maria ou um João, ninguém no mundo vai me tirar o direito de ser feliz não. E ser feliz é direito de todos. Ou pelo menos deveria ser!
Então praqueles que estão aí, espalhando o ódio porque duas senhoras se beijaram na novela, acostumem-se e engulam o mimimi. Porque eles, elas e todos nós vamos encher esse mundo de amor. Gay, Hétero, Bi, Trans. Simplesmente porque é de amor que o mundo precisa. Não rótulos. Agora virem o disco.
Ta? Deu!
Fim da sessão.
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