Categorias: Crônicas

Se essa rua, se essa rua fosse sua

Eu sou a menina estuprada na Redenção. Você também. Eu tenho medo ao sair de casa. Todo dia. “De ser assaltada?” Antes fosse. O iPhone posso deixar sobre a mesa da sala. Mas o que faço com minha integridade, quando o bem mais valioso não pode ficar em segurança? Dilacero, rompo em partes os peitos, barriga, boca, bunda? Deixo a minha vagina em casa? Quantas de nós serão invadidas na Redenção aos olhos alheios? E se a história fosse outra?

Eu também tenho uma história pra contar.

Uma vez vi um jovem descendo do ônibus. Desceu, largou o skate e tirou a camisa. Tinha o tórax suado, peito e barriga de quem malha bastante, assim, só pra se exibir sabe? Os mamilos durinhos olhando pra mim. Uma delícia. O volume da calça era vantajoso. Tinha certeza que ele estava excitado comigo olhando para ele, mesmo que não fizesse contato visual. Mas ele não disfarçou. Ficou ali, mexendo no celular na minha frente, esperando eu tomar uma atitude. E eu tomei.

Surpreendi-o por trás, puxei contra o meu corpo e fui logo colocando a mão no volume dele. Esfreguei bastante, apesar da resistência. Sabia que ele só tava se fazendo de difícil. Passei as mãos naquele tórax imenso, apesar das tentativas dele de me empurrar. Eu estava muito excitada com aquele faz-de-conta. Apertei a nuca dele, enfiei minha língua na orelha dele puxando-o pelos cabelos, enquanto com a outra mão, apertava sua bunda, bem no meinho. Isso tudo ali, pra quem quisesse ver. Obvio que ninguém interferiu. Estavam todos preocupados com horário do ônibus, o supermercado da semana, a corrida no parque. Virei ele de frente pra mim e o beijei gostoso várias vezes, enquanto ele virava-se de um lado para o outro fingindo que não queria a minha língua quente e invasiva.  Mordi o lábio dele bem forte para depois soltá-lo. Arranquei-lhe a mochila, peguei a carteira, e joguei o resto contra ele. Segui o meu caminho despreocupadamente. Eu sabia que no máximo ele ia virar estatística.

Se essa rua, se essa fosse deles?  Alguém teria ouvindo? Achado a situação adversa? Intervido?

Se essa rua fosse deles,  rua escura, com um inimigo eminente a cada esquina. Seria diferente? Teríamos policiais preocupados ao menos em nos consolar? Não tornar um ato de violência em um fato corriqueiro? Teríamos quem juntasse os pedaços que nos restaram na grama da Redenção? Se essa rua fosse deles, crimes como estes seriam vistos de forma leviana, quando “mas nem houve penetração…”? Precisa de penetração? Não basta a alma dilacerada? O trauma eterno? Precisa-se de penetração física e forçada para ser ouvida? Para virar estatística? “Isso é lenda urbana”, li por aí. Lendas ou histórias urbanas? Daquelas que nos acostumamos a conviver, mesmo que com nojo? “Campanha publicitária”, outros falam. Ah é? E quem está assinando? A marca de todas as mulheres do mundo?

Veja bem que nesta história, não se quer ser vitimizada porque somos o sexo frágil. Se quer ser vitimizada quando somos vítima, e quando estamos frágeis – nas ruas da insegurança e da impunidade. “Isso não vai dar em nada” dizem aqueles pagos para nos defender –  talvez não dê em nada mesmo, penso eu, mas custa não nos roubarem a esperança? Já nos roubam o corpo,  os pertences, a tranquilidade. Também a esperança? Esperança de que se fizermos a nossa parte, dermos queixa, alguém vai ligar pra nós, se preocupar com a nossa história, sofrer conosco? “Não me envolvi porque não era assunto meu”. E eu espero que nunca seja, pois poderia ser assunto seu quando sua mãe vai ao mercado, sua irmã ao barzinho, sua namorada no trabalho. Talvez se essa rua fosse deles, as coisas seriam diferentes.

“Então a culpa é do homem?” Não, não é. É toda nossa. Antônias e Antônios, que se omitem, que não registram, que não chamam atenção para a sua história, para esta história. Eu estuprei aquele jovem forte e gostoso naquela noite de março, você acredita?  Não né? Mas e se essa rua fosse deles, rua escura, com um inimigo a cada esquina, você acreditaria?

Não adianta queimarmos sutiãs, se nos tocam os peitos. Exigir mudanças salariais, se não houver mudança de atitude. Não adianta sair da cozinha, se não podemos sair de casa. Hoje somos todas oprimidas, simplesmente por andarmos por aí. Afinal ainda não descobrimos um jeito de deixar a vagina em casa. Quantas de nós serão invadidas na Redenção? E eu não canso de perguntar…                    E se essa rua fosse SUA?

 

Nessa rua, nessa rua tem um bosque. Que se chama, que se chama solidão.

Dentro dele, dentro dele mora um anjo? Que roubou, que roubou meu coração.


Fim da sessão

 

Antônia no Divã

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Antônia no Divã

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