Inocente
Era uma pacífica sexta-feira, e por volta das 20h30 eu já gozava do conforto do meu pijama de inverno, me rendia a uma taça de vinho e a ideia de dormir cedo. Domingo era dia dos pais, e eu já tinha me convencido de que aquele deveria ser um final de semana tranquilo.
Inocente. Eu sou mesmo muito inocente.
O telefone toca. Do outro lado da linha a minha BFF Melina fala acelerada sobre uma viagem para o norte do país para acompanhar a gravação do DVD de um grupo de pagode. Queria que eu fosse junto para lhe fazer companhia. A Melina, que sempre foi ligada no 220v, vivia envolvida em eventos fodásticos como lançamento de bandas e shows pelo Brasil. Uma atividade que ela tirava de letra, mas que lhe tomava muito tempo, deixando pouco espaço para os amigos, ou até mesmo um relacionamento. Cedi à saudade que estava da amiga, e depois de alguma relutância, concordo em ir com ela. “OK, Melina, nós vamos!” “Ótimo!”. “Mas pra onde vamos?” – alguns segundos de silêncio do outro lado… “Manaus, nós vamos pra Manaus.”
A Melina então explica que iria fazer algumas ligações para ajustar minhas passagens, e me orienta a fazer as malas imediatamente, pois antes de embarcarmos, deveríamos passar em outro evento de um artista que ela tinha interesse. Eu, muito obediente, começo a fazer as malas. Ligo pra minha mãe e informo-a de meus planos. “Manaus?! Mas domingo é dia dos pais, Antônia. O que eu digo pro teu pai?”. “Não precisa dizer nada, mãe. Domingo chegarei para o almoço, fique tranquila.”
Na van, a caminho do primeiro evento do final de semana, vou tentando obter mais informações sobre a viagem do dia seguinte. A Melina responde uma coisa ou outra sem muito interesse, evidentemente mais preocupada com o nosso destino. “Você está muito ansiosa por esse evento de hoje. Normalmente você faz isso com um pé nas costas”. Ela fica vermelha e eu fico confusa. “Melina, para onde estamos indo e quem vamos ver?”, ela sorri sem graça – “Taquara”. “Melina, isso fica a 80km do aeroporto! O nosso voo é às 6h00! Quem é esse cara que é digno de tanta comoção?” “Possivelmente, o futuro pai dos meus filhos” – desabafa. A Melina então me conta que dentro de sua rotina maluca, havia conhecido alguém especial, e que antes da nossa viagem, gostaria de ver o cara com quem ela estava iniciando o romance. Derreto-me toda com a história. “Motorista, toca pra Taquara que a gente tem pressa”, grito pro bigode no volante.
Por alguns instantes achei que nosso final de semana acabaria mesmo em Taquara. Mas não, às 5h35 o motorista da van freia bruscamente na frente do Aeroporto Salgado Filho e nos acorda com um grito: “Chegamos!! Corram gurias, acho que vai dar tempo!!” Sonolenta, remelenta, bêbada e toda encasacada, me encaminho com pressa para o guichê da companhia aérea e indago a atendente: “Moça, onde fica o check in para o voo das 6h para Manaus?”. Ela me olha com estranhamento e dispara: “Às 6h só tem voo para Belém do Pará!”
Oi?!?!!!
“Melinaaaaaaaaaaa!!!” Grito pra ela, interrompendo o beijo de despedida dos dois pombinhos na porta do saguão. “Pode vir até aqui, pois nós temos um probleminha…”
Passamos os nossos dados e lá estavam: duas passagens em nossos nomes para Belém do Pará. BELÉM DO PARÁ. Eu olho para a Melina, que no meio desta confusão, ainda assim não consegue esconder o sorriso bobo, embriagada de amores com os primeiros beijos do paquera. Eu, embriagada de vodka mesmo, olho novamente pra atendente e me contento: “Se é Belém do Pará que está aí, é pra Belém do Pará que a gente vai”.
Ligo pra minha mãe de novo, e deixo uma mensagem, avisando da mudança do trajeto, e explicando de antemão, que eu era inocente na história. Sempre inocente.
8h de voo depois, um rapaz com uma plaquinha com o nome da Melina nos aguardava. Ele, e claro, um calor de 50°C. Em Agosto. E nós com três camadas de roupas, direto do frio dos pampas. “Moço, nós vamos direto para o hotel?!”, pergunto. “Não! Vocês tem uma programação”. Claro que nós temos… como eu sou inocente.
Com duas blusas de gola, meia calça fio 40 e bota até o joelho, seguimos para encontrar o pessoal da banda e demais convidados em um restaurante da cidade. 3h depois, sem ar condicionado, segurando o sorriso e pesando 2kg a menos de tanto suar, o motorista nos informa: “o próximo destino fica no caminho do hotel, vamos passar lá”. Louvai-vos à Nossa Senhora do Ar Condicionado!
Chegando nas proximidades do hotel o motorista muda de ideia, “Vamos seguir! Vocês têm muito pra ver ainda e pouco tempo”. Es.pe.ta.cu.lar.
O tour incluía o porto da cidade e uma cervejaria fantástica digna de não perder mesmo. Terminado o tour, chegamos finalmente ao hotel. Já sonhava acordada com a minha cama, quando o motorista dá a nossa sentença: “Vocês tem 1h antes de irmos para a gravação do DVD. Vou aguardar na recepção.”
1h depois, fomos para a gravação do DVD. Um show com uma mega produção, dúzias de novos amigos, vodka brotando do chão, horas e horas dançando muito e rindo litros. As 5h da manhã chegaram num piscar de olhos, e me encontraram dançando até o chão aquela música que conta que “o Pimpolho é um cara bem legal…”. Digníssima hora de ir embora.
“Motorista, que horas é o nosso voo?” “6h30. Vai dar tempo de pegar as malas e sair correndo”. Claro. De novo. Recolhemos tudo no hotel, e saímos em maratona novamente para o guichê da companhia aérea, vestido curto, maquiagem borrada, embriagadas, famintas e fechando 30h sem dormir.
“Agora, já deu!” Penso comigo. “No avião é comer, dormir e chegar em casa.” Inocente. “Olá, meu nome é Antônia e eu sou mesmo muito-muito inocente”. “Olá, Antônia” respondem aeromoças em uníssono.
Minutos antes do serviço de bordo iniciar com o café da manhã, um senhor enfarta dentro do voo. Isso é hora de enfartar, oh desgraçado!! O serviço é suspenso, e fazemos todos um pouso de emergência em Brasília.
“Moça, e o sanduíche?” pergunto nervosa, enquanto a Melina – que agora se alimentava só de amor – dormia. “Só quando voltarmos ao trajeto”.
Uma hora depois, voltamos aos céus e ao serviço de bordo. “Moça, tem como me deixar dois sanduíches? Eu não jantei.” – sorriso amarelo. Ela, com cara de desprezo, faz a caridade.
Nova parada: Rio de Janeiro. “Moça, por que paramos?”. “Precisamos abastecer devido ao pouso de emergência em Brasília”. Posamos. Decolamos e seguimos adiante. A fome voltou. “Moça, tem mais um daqueles sanduíches?” “Só depois que pararmos em Florianópolis” ela responde. “MAS POR QUE DIABOS VAMOS PARAR EM FLORIANÓPOLIS? – me altero. “Porque a escala deste voo é em Florianópolis”.
Caceta!
18h da tarde. Olho para a Melina com uma cara de choro, e disparo “Se fizermos escala em Caxias do Sul antes de Porto Alegre, eu fico por lá mesmo”. Ela dá risada.
20h, chegamos ao nosso destino final. O paquera da Melina a esperava no portão para levá-la em casa. Depois desta viagem, ela contabilizou um amor de verdade, um casamento e um filho lindo.
Eu? Eu contabilizei 23h me deslocando, 8.000km percorridos de Norte a Sul do país, 15h em Belém do Pará, 3h de sono, 6 escalas, 3 sanduíches e um almoço de dia dos pais perdido.
Liguei pro meu pai, e contei minha improvável história. Ele riu da minha cara, e disse que eu era tudo, menos inocente naquele episódio. Mas que me perdoava.
“Mas afinal, qual era o nome da banda?”
“Que banda, pai?”
“A banda, da tal gravação do DVD.”
“Tu não vai rir, né?”
“Eu prometo, Antônia.”
“Jeito Inocente”.
“HAHAHAHHAHAHAHAHAHAHHAHAHAHAHHAHAHAH”.
Fim da sessão.
Gisele
Adorei teu texto. Sou de Belém do Pará e conheço essa tal banda Jeito Inocente, Hahaha.
klebiane
Adorei!! Ótima leitura!!
Bárbara
Deliciso!