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O muro e eu

Quando decidi fazer as malas e viver no velho mundo, o que sempre me atraiu foi a história. Eu queria andar nas ruas onde se passaram revoluções, respirar ares de onde fatos marcantes aconteceram. Eu sabia que para tal, não bastava apenas vagar por arruelas importantes, devia reconhecê-las. Entendê-las. Estudá-las. Assim, quando finalmente decidi retornar ao Brasil, não podia fazê-lo sem o tão sonhado mochilão pela Europa. Reservei 60 dias para a estrada, fiz meu roteiro e cai nos trilhos do trem acompanhada apenas de coragem e minha aguçada curiosidade. O plano era simples, conhecer lugares lindos, encontrar gente divertida e, de quebra, aprender um pouco sobre o caminho. Baixei todos os guias de áudio do Rick Steves no meu celular, comprei os guias mais recomendados, tracei alguns objetivos e achei que estava pronta para aprender. Amsterdã e Bélgica foram as primeiras cidades da Eurotrip, e rapidamente percebi que estava alimentando-me mais de spice cake e cerveja belga do que conhecimento. Achei que dali pra frente a viagem ia ser ladeira abaixo, exclusivamente na avenida da diversão. Mas então veio Berlin.

A Alemanha não estava nos meus planos inicialmente, dado alguns pré-conceitos bitolados que sempre tive com os alemães. Quando escolhi Berlin, queria apenas ver o muro. O famoso muro de Berlin. O muro que caiu dentro de mim, entretanto, foi imensamente maior a parede de tijolos que eu visitara. Eu perdi a minha inocência em Berlin. Na capital alemã eu entendi de fato o que era maldade – eu nunca estivera exposta a tanta maldade. Eu me aprofundei na história sentindo uma dor jamais sentida antes. Dor de perda. De injustiça. Eu senti raiva andando nas ruas, raiva da história, antes vista bem de longe nos livros da escola. Da minha sala de aula ou sala de casa, eu não sentia o vazio no peito enaltecido pelo monumento Neue Wache. Do conforto da minha casa não sentia o vácuo das prateleiras no subsolo da praça em frente a Humboldt University, onde “livros ofensivos” aos olhos do nazismo foram queimados. Eu nunca havia imaginado que a genialidade de Albert Einstein e a intolerância de Hitler haviam dividiriam o mesmo cenário. Ali – naquele momento, entretanto – eram apenas prateleiras vazias. Sentimento de vazio. No Jewish Museum relembro como se fosse hoje o mal estar de caminhar sobre rostos de metal no chão de uma das instalações do museu, sentindo a insegurança dos passos e a ignorância de quem pisa em alguém.

No Checkpoint Charlie, aprendi sobre o poder da propaganda no que foi o maior genocídio da história da Europa. Nunca, em toda a minha faculdade de publicidade e propaganda eu havia mensurado o poder de uma campanha. Berlin jogou verdade na minha cara como um soco reto. De como o ser humano pode ser irracional, cruel e devastador. De como a história respira viva acima de tantas mortes.
Lembro-me de reparar em uma fachada de um prédio todinha furada de tiros, quando perguntei confusa para a alemã que me acompanhava “por que não arrumam a fachada?”. E com uma dureza melancólica no olhar ela disse: “Para nos lembrarmos do que aconteceu aqui. É do aprendizado fortalecido pelas memórias do passado que aprendemos a fazer um futuro melhor”. Berlin me ensinou a ter memória, e respeito pelos erros cometidos. Mostrou-me a não esconder as cicatrizes e aprender com elas.

A cidade obviamente tinha mudado muito desde a queda do muro, eu agora sabia. Se tornara receptiva, colorida, moderna, uma cidade vibrante. Mas Berlin era mais do que um destino turístico, com delícias como pretzels, bier e sausages. Era um marco dentro de mim. Um muro que caiu. Arrancou-me com as unhas o meu preconceito. Mostrou-se um lugar com respeito pela própria história, que não esconde ditadura nenhuma embaixo do tapete. E que seguiu em frente evoluindo dos destroços e dos horrores dia a após dia. Depois de Berlin, viajar se tornou um ato não apenas de autoconhecimento, mas de profundo conhecimento do mundo em si.

Depois de Berlin vieram muitas outras lições. Em Istambul me senti invadida por homens que nunca me olhavam nos olhos, mas encaravam meus peitos e pernas sem nenhum pudor. A burca em si me pareceu um paradigma tremendo entre a invasão e proteção. A mesma Istambul que me fez ter vontade de vestir a burca, me deixou nua em frente a uma mulher desconhecida (e também nua), que me deu o fomoso banho turco sem qualquer constrangimento. Eu, que não tinha sido banhada por outra mulher há mais de 25 anos, e muito menos por alguém que não fosse a minha mãe. E aquela turca o fez, com carinho de mãe, lavando meus cabelos, ombros, peitos e pernas, cantando uma canção tranquila que ecoava no teto em cúpula daquele lugar tão sagrado e feminino.

Na Croácia aprendi o valor de almoçar entre família embaixo de um parreiral de uvas, e de assisti uma missa inteira,  em croata – fazia anos que eu não almoçava em família, e muitos outros que não ia à missa. Nunca em croata, óbvio. Em Roma aprendi que não se pode tomar banho em fontes públicas e que devo manter meu pudor dentro do Vaticano. Em Munique conheci o prazer de ser recebida de portas abertas na casa de alguém que nunca vi antes, e que não me pediu nada em troca através do Couchsurfing – projeto lindo para quem quer receber visitantes no mundo inteiro em seu sofá.

Anos depois veio a Tailândia, onde entendi que não podia imitar poses de budas, pois me ofenderia se alguém entrasse na minha igreja e tirasse fotos fazendo a pose de Jesus Cristo crucificado. Aprendi a respeitar o silêncio dos templos. E que os tailandeses por vezes têm a sinceridade de uma criança, dizendo na porta de suas lojas, antes que você entrasse, que eles não tinham tamanho de roupa para você, e que você deveria parar de comer – assim, normalmente, como quem dá um conselho a uma amiga. Lá, eu também reforcei meu respeito pelas forças da natureza, em lugares destruídos e rotas de fugas para tsunamis. Reforcei meu respeito pela superação e sobrevivência em cada cidade reconstruída que visitei. E hoje torço que o mesmo aconteça com o Nepal.

Neste ano visitei a Austrália, e me comovi com a história dos povos indígenas/ aborígenes, enganados e comprados pelos povos europeus, e deslocados até hoje dentro de suas próprias terras. Da mesma forma como na história nada diferente dos Pataxós, Xavantes, Tupiniquins, e outros tantos no Brasilzão que eu, descendente de Italianos, chamo de lar. Na mesma Austrália aprendi que a submissão à Inglaterra é fortalecida pela insegurança de uma possível guerra. “Mas acho improvável uma nova guerra…” justifico meu desentendimento quanto a preocupação do australiano com quem conversava. “Talvez você devesse visitar o Oriente Médio então” ele respondeu com um olhar cético. Vejo hoje que foram tantas lições e lugares diferentes, que cada carimbo no meu passaporte, era outro mais profundo na minha alma.

Então perceba, não estou aqui mais uma vez pregando que é preciso ir embora (mas é!), para que você aprenda as lições da vida. E nem  dizendo que minhas andanças pelo mundo não foram banhadas a cerveja e noites mal dormidas dividindo beliches. Não é isso. O que analiso nesta sessão é a importância de não andar por aí despropositadamente. Ou como disse Dan Brown em O Simbolo Perdido, de que  “Viver no mundo sem tomar consciência do significado do mundo, é como vagar por uma imensa biblioteca sem tocar os livros”. O que reconheço aqui é o poder e o privilégio de realmente viver as ruas que recebem nossos passos, sejam eles aqui, Pindamonhangaba ou no Azerbaidjão. É preocupar-se em conhecer o mundo que foi ontem, que é hoje, para que os muros da incompreensão e intolerância não se levantem. E caso se levantem, que sejam derrubados. Aqueles muros que você mesmo construiu em volta de si, sabe?

“Berlin wird leben und die, mauer wird fallen”

“Berlim vai viver e o muro vai cair” – disse Willy Brandt, prefeito da cidade no ano em que o muro foi derrubado.

Então faça o mesmo. Derrube os muros.


Fim da sessão.

Antônia no Divã

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Antônia no Divã

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