(Parte 1) – No meio do caminho tinha uma pedra
A anestesia durou tempo suficiente para que eu sentisse o tubo respiratório sendo removido da minha garganta ao acordar. Queria ter sonhado por mais alguns segundos para não sentir o plástico duro arranhando as minhas profundezas até a boca. Frio. O meu corpo inteiro treme sem obedecer a comandos básicos. Um grupo de ritmadas enfermeiras arrumam meus travesseiros, posicionam cobertores. Máquinas de massagem são colocadas nas minhas pernas, além de meias muito apertadas – “para evitar embolia”, penso eu. Como se eu soubesse o que é embolia. Eu perguntaria para o meu irmão o que é embolia. Meu irmão! Lembro-me do meu pedido antes de entrar na cirurgia – “eu não morri”.
Eu sei, parece dramático achar que um furo nas costas pudesse me matar. Mas ao lembrar-me das lágrimas da minha mãe ao saber da cirurgia, sinto que passei a cultivar receios que antes não tinha. Cautelas que antes só conhecia através do dicionário. Minha mãe. Preciso avisar minha mãe que deu tudo certo. “Vou deixar que ela avise meu pai” – penso comigo – ela sabe como falar com ele. Coitado do meu pai – eu lamento – deve estar pensando mais uma vez que Deus está nos castigando. Meu pai não passou um dia desde a nossa tragédia familiar sem pensar que estamos todos recebendo um castigo divino. Sempre tento explicar que somos pessoas boas, que castigo não é o caso. “Pessoas boas não tem a filha operada do outro lado do mundo” – ele deve estar pensando agora mesmo.
Sinto uma dor no peito. Culpa? Saudade? A maquininha do meu lado começa fazer um bip-bip descompassado. O ar evapora dos meus pulmões. A enfermeira aperta alguns botões e ajusta uma máscara de oxigênio no meu rosto.
– “Você está apresentando oxigênio baixo, vamos ter que te manter na máquina mais ou pouco, ok?” – ela explica.
Por ironia do destino, havia parado de fumar fazia 30 dias (graças a minha falta de dinheiro muito mais do que força de vontade, confesso). A sensação da falta de ar me fez repensar os meus 10 anos de fumante. Aqueles que eu nunca admito aos médicos. “Fumante, Srta Antônia? – “Eu? Ahn, como você caracteriza alguém como ‘fumante’?” – eu enrolava. Agora estava eu, numa cama de hospital, aos 32 anos, lutando por ar, tendo a certeza de que a culpa era toda minha.
Hora de ir para o quarto. As enfermeiras do andar aparecem para se apresentarem e entender mais sobre o novo caso vindo do bloco cirúrgico. “Antônia tem 32 anos, apresentava um massivo cálculo renal no rim esquerdo, Dr. Tracey realizou uma “!@#$%¨&&*#$” (nome do procedimento de remover uma pedra pelas costas), ela está com um tubo ligado ao rim pelas costas e outro cateter através da uretra.” – “EU ESTOU COM UM TUBO ONDE????????????” – interrompo assustada. “Nas costas” – a enfermeira do bloco responde sorrindo. Coloco a mão na lombar e sinto um tubo da grossura de um dedo saindo de um curativo colado na pele. Vou tateando com a mão e vejo que o mesmo está ligado a uma bolsa – com um líquido amarelo e pequenos volumes transitando, como o trânsito de pedras numa marginal amarela.
– “Eu acho que vou vomitar” – anuncio.
– “É o efeito da anestesia, vamos te medic…” – Era tarde demais.
Uma hora mais tarde, a porta da qual transitavam enfermeiras a todo instante, abre-se para uma visita mais esperada. Um alento para o meu peito cansado. Aqueles grandes olhos verdes me receberam com uma mistura de alívio e expectativa. Dei-me conta, pela primeira vez, do quanto esse garoto deveria estar assustado. Num minuto convida uma maluca para passar umas semanas na Austrália, e no outro tem de levá-la as pressas ao hospital e administrar o contato com a família e amigos dela (todos igualmente malucos) para dar notícias. Não tinha sido esse o nosso combinado, eu sabia.
Ele me abraça por entre tubos enfiados por veias e orifícios. Suspira longamente. “Eu estou bem” – lhe asseguro. “Foi moleza” – sorrio, forçando um pouco a barra. Ele beija a minha mão, e diz que eu estou linda. Agora ele forçava a barra. Comento o pouco que sei da cirurgia e dos variados tubos que tenho grudados em mim. Uma enfermeira entra para verificar o oxigênio – que agora é fornecido por um pequeno tubo no nariz, ao invés da mascara. “Esse é seu namorado?” – “NÃOOOO!!” – respondo em pânico antes que ele pudesse responder.
Desejei que ele não tivesse ouvido – mas sei ouviu. Não queria dar ao Boy o peso de perguntas complicadas por cima de uma situação já complicada o suficiente. Fiquei com medo que a máquina ligada aos meus batimentos cardíacos acusasse meu sobressalto. Olhei para ele sem graça enquanto ele sorria, com aquele grandes olhos verdes que combinavam com meu avental descartável.
Tudo se tornou real, entretanto, quando o efeito da medicação para dor chegou ao fim, sem qualquer aviso. O Boy que chegava de volta da cafeteria, cruzou com uma enfermeira apressada que saia do meu quarto ao som dos meus gritos. Pausa para contextualização: se você já teve cólica renal ou se já encarou a dor de um parto vai me entender. A dor renal sai da intensidade do 0 ao 10 em questão de segundos. Faz você sentir um misto de sensações assassinas e suicidas ao mesmo tempo. Naquele momento o Boy entrou no quarto para encontrar uma Antônia emitindo grunhidos viscerais, audíveis por todo corredor, carregadas de feições faciais dignas do filme “O Exorcista”. Não era nada bonito.
Enfermeiras entram, conferem meus dados, e aplicam uma injeção na minha coxa com algo que deveria ser parente da morfina. A cena toda durou apenas alguns minutos, mas o suficiente para ser traumatizante para alguém que nunca lidou com cólicas renais antes. O lindo garoto de olhos brilhantes estava em choque observando tudo da porta do quarto. Foi naquele momento que o vi perdendo o “cool” dele. Vi o medo e a responsabilidade jogando a falsa tranquilidade que eu havia lhe dado pela janela. Segundos depois da injeção, voltei a ser eu mesma. A transformação foi como uma cena do filme do Incrível Hulk ou O Médico e o Monstro. Eu estava finalmente melhor – mas não havia injeção para o estado de pânico que o garoto agora se encontrava.
Ele sentou na cadeira do lado da minha cama, e encarou longamente a parede com os olhos marejados. “Lindo, eu estou bem! Eu juro.” – eu dizia insistentemente. “Me dá uns minutos, Antônia” – ele pediu com a voz tremula. Eu me senti péssima por assustá-lo. Senti-me pior ainda por fazê-lo pensar que ele era responsável por mim, naquele país, tão longe de casa. Como eu podia privar meus pais dos detalhes doloridos da minha operação, e fazer alguém, que genuinamente entrou nesta de gaiato, passar por isso?
– “Lindo, vai pra casa”. – exigi sem demora. “Amanhã você volta”.
– “Vou ficar aqui contigo, eu só fiquei assustado que pudesse ter algo de errado contigo, e acontecesse algo de grave, e aí eu ia …”- a voz dele trava.
– “São só dores, e elas vão vir e voltar a noite inteira hoje. E vai ficar tudo bem. Amanhã você volta. Vá agora”. – Ele me beijou a testa inseguro, e com uma tristeza no olhar foi embora. A despedida foi curta o bastante para evitar que ele presenciasse uma nova crise de cólicas.
As crises duraram a noite inteira, como eu previ. E a noite inteira eu as encarei com a convicção de que devia passar por aquilo sozinha – porque é isso que a gente faz quando a gente cresce – esse foi mais um dos meus aprendizados. A gente protege quem a gente ama e quer bem, daquelas dores que só a gente pode aguentar. A gente protege os nossos pais. E os garotos bonitos que não suportam nos ver sofrer. E nessas situações a gente escolhe que algumas pedras a gente tem lidar sozinha – pelo menos por uma parte do caminho.
Nos dias que se passaram – entre uma segunda cirurgia pela uretra e outros três dias de internação, lá estava ele, com seus olhos curiosos e coração em prontidão. O Boy me viu ficar anojada diariamente com toda a medicação que recebia. Viu meu corpo inchar em 5kg de puro líquido como parte do processo de limpeza do meu rim. Por Deus, esse garoto me viu mijar pelas costas por um tubo. Viu-me arrastar até o banheiro com um cateter pendurado no meio das pernas. E me viu praguejar um hospital inteiro quando cheguei ao meu terceiro dia com o intestino absolutamente constipado, onde tudo que eu queria na vida era cagar (e só conseguia falar disso). Esse garoto só não viu a enfermeira enfiar um supositório no meu único orifício livre, porque eu pedi que ele saísse do quarto. Fora isso – e o eventual efeito do supositório – ele esteve do meu lado o tempo inteiro.
Ele esteve do meu lado quando o urologista anunciou que eu precisaria de uma terceira cirurgia, pois um pedaço da pedra e um cateter haviam ficado para trás. Viu-me preocupada com o meu futuro, pois a esta altura o meu seguro previsto para 2 meses de viagem, já havia vencido. Eu não tinha certeza de como proceder sobre o futuro. E a ideia de ilhas desertas com o meu surfista parecia cada vez mais distante.
Mas dentre todas as angustias que eu ainda ia encarar com a minha saúde nos dias que viriam, uma certeza permanecia. A presença incondicional daquele garoto, apesar de todas as pedras no caminho.
Sabe, aos 32 anos, eu já não me apaixono mais tão fácil. Os meus relacionamentos esbarram no ciúme de um, na falta de ambição do outro – ou nem chegam a virar algo mais quando recebo um “vosê” no whatsapp. Então ver minha admiração por alguém crescer de forma consistente e tão justificável, foi como uma dose de morfina em um coração doído. Veja, eu sou uma pessoa legal de ter por perto na sua melhor forma – mas ali eu sabia que eu estava muito longe da minha melhor forma. E ver alguém ficar ao meu lado, depois de enxergar tudo aquilo que se encontra embaixo do bonito, do agradável, do sexy, me ajudou a curar outras partes de mim que nada tinham a ver com o meu rim.
Eu não sabia o que o futuro reservava para nós dois. Mas eu sabia que o garoto ia ficar marcado em mim, como a cicatriz de uma cirurgia. Aquela marca que precisou ser feita para poder desbloquear algo vital de que se precisa para seguir vivendo. E amando.
Fim da Continuação na próxima sessão.
Próxima sessão: Quarentena
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