Efemérides

Sobre luto e luta

em
15 de março de 2018

Hoje é aniversário do meu irmão. E não importa quanto planejamento emocional e espiritual a gente faça, nunca se está preparado para viver um dia em que a saudade grita tanto. Onde a dor pede passagem. Luto e luta convivem, nunca separadamente. É preciso ter coragem pra encarar o luto. Mais ainda para conseguir seguir lutando.

Antes de o dia começar, já chorava as perdas de outra história. Marielle Franco fora executada a sangue frio por causa de sua luta. Antes de morrer, perguntou: “quantos inocentes precisam morrer para essa guerra acabar?”. Então tive que botar o meu luto numa caixinha, para viver o luto das mulheres negras por quem Marielle lutava. O luto, perceba, não tem hora marcada. Ele se instaura, e te exige atitude. Desistir ou lutar?

Ao meio-dia, já estava exausta da angustia que me agarrava o peito. O luto pelo país que eu já amei bem mais. O luto pelo irmão que amo incondicionalmente. Quando o Mateus e o Murilo chegaram da escola, pedi um abraço de consolo. Se eu não podia abraçar o Léo, podia encontrar conforto naqueles pequenos braços com quem eu também divido a irmandade. O Murilo, que é super ligado ao irmão mais velho, perguntou se eu havia chorado. E eu não pude mentir. Porque se escondesse meu luto, ele poderia entender que deveria esconder o dele. E sentimentos presos não fazem bem a ninguém. Em qualquer idade. Então eu disse que sim, que havia chorado. Então ele me segurou bem forte, como a fortaleza que aprendeu a ser desde pequeno.

Desmarquei as reuniões da tarde, e decidi passar o dia com a minha mãe. Levei-a para comprar um álbum, para montarmos juntas, com fotos e as histórias do meu irmão. Eu sei a importância que as histórias têm, então faço questão de deixa-las bem vivas, ao toque das mãos. Perto dos olhos. Lutar é reconhecer é contar a história completa. Reconhecer que certas partes doem, não importa o quanto o tempo passe. Resistir é também se entregar. A saudade, a ira, a dúvida, a dor. Lutar é manter viva a memória daquilo que importa, com todas as suas nuances.

E nesse processo de manter viva a memória do meu irmão – que é talvez o único medo que hoje eu tenho, essa, de perder aquilo que me restou – eu faço uma constante revisão do que ele foi pra mim. E nisso, eu trabalho bastante pra não cair na armadilha de canonizar o Leonardo. As pessoas têm tendência de tornar santo quem não habita mais o âmbito terrestre, e isso me assusta. Não quero apenas a parte boa dele. Quero lembrar-me de tudo. A mania chata de nunca me retornar as ligações. O jeito espaçoso que tinha de me pedir favores. O atraso constante para todo e qualquer compromisso. Tudo. Eu decidi lembrar e continuar amando também os seus defeitos. Porque perceba que santificar esse cara, seria transformar a vida dele numa história injusta. E eu gosto é das histórias de verdade.

O Leonardo era humano, e por isso errava. E amor sobrevive a esses perrengues, sabe. Edifica-se em cima deles. Então ao contrário de muitos, eu evitei olhar para ele como um anjo que subiu aos céus. Porque isso nos afastaria ainda mais, e eu preciso dele vivo bem dentro de mim. Do jeito que ele foi. Apesar do que ele foi. Principalmente pelo que ele foi. E essa tarefa não é fácil, quando se está de luto (se é que luto termina). Porque a luta apresenta armadilhas para aliviar o coração. E não dá pra botar band-aid em um buraco no peito. Seja no meu luto, ou na luta da Marielle, por exemplo.

O luto, me parece, só melhora através da luta. E não tem outro jeito. Ele se transforma a partir do que a gente faz com a dor. Se isso vira doação de sangue, mudança de atitude, protesto. Luta presente! Marielle presente! Leonardo presente! Tudo isso ainda está aqui, mesmo sem a matéria. Até porque matéria sequer ocupa mais espaço do que sentimentos e ideais. Esses se propagam. Movimentam. Inspiram. Motivam.

Então como falei, não dá para separar o luto da luta. E nesse contexto só temos duas escolhas, perdurar ou render-se. E render-se é uma opção injusta demais com o que ficou. Injusta demais com a luta.

Sendo assim, e hoje mais do que nunca, choremos o que há pra chorar. Abracemos a dor e a reconhecemos presente. São essas atitudes que tornam a gente, pessoas vitoriosas. Não que existam vitoriosos e perdedores no luto. O vencer está no nada-simples ato de resistir. O vencer está na decisão de lutar. Todos os dias. E apesar do luto.


Fim da sessão.

Nota direcionada ao meu irmão: Oi Léo. Feliz aniversário. A campanha em tua homenagem segue bonita, e a participação tá tão linda que decidimos estender por todo o teu mês. Hoje o dia foi difícil, tu tens que entender. Eu chorei escovando os dentes, porque sabe, não tem hora para isso acontecer. Depois eu dei risada explicando pros teus irmãos no almoço que “cu” não era palavrão. Depois chorei de novo porque eles me contaram que estão continuando tua coleção de Pokemons, eu achei uma maneira bem digna e lúdica de eles te homenagearem do jeito deles. Sem nenhuma intervenção nossa. Eu sigo falando teu nome constantemente. A mãe e eu conversamos todos os dias tentando assentar sentimentos. Eu escuto o pai bastante, e na medida do possível, tento confortá-lo. A gente segue cuidando de quem tu ama, e as pessoas que te amam fazem o mesmo conosco. Tudo está onde deveria estar, apesar da dor, essa me desculpe, vai seguir companheira, tal como a saudade. Mas não deixe que isso estrague teu dia. Ou tua paz. Porque esse é o único presente que a gente quer te dar: seguir vivendo intensamente, lutando, como tu sempre quis que fizéssemos. Para que tu sigas existindo dentro de nós e onde estiver, em paz. Te amo, irmão.

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5 Comments
  1. Responder

    Paula

    17 de março de 2018

    Oi, querida! Queria dizer que fiz minha doação de sangue aqui em Coimbra, Portugal. Pode contabilizar mais uma. Muita força e amor para vocês! Beijos.

  2. Responder

    Judi

    16 de março de 2018

    Ri me lembrando daquela foto depois da partida com asas de anjo, totalmente non-leo ????????????

  3. Responder

    Ana Teté

    16 de março de 2018

    Desistir jamais. O luto e a luta constante, pelas causas, pela saudade, pelo vazio e pelo amor. Obrigada pelo texto.
    Luta, presente. Marielle, presente. Anderson, presente. Leonardo, presente. Luiz Roberto, presente. ????????❤️????

  4. Responder

    Dulce

    16 de março de 2018

    Perdas. Luto. Lutas. Vivi isso e, depois de 10, quase 11 anos, continuo na luta pela perda dolorosa do meu filho… como Marielle ele foi tirado do Mundo por pessoas que se intitulavam humanos e, como o Leo, ainda tinha muito o que viver… até quando inocentes morrerão e mães e filhas chorarão a perda de seus amores?

  5. Responder

    Valentina

    15 de março de 2018

    ❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️
    …e
    ????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????

    Beijos, amiga!

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Aline Mazzocchi
No divã e pelo mundo

De batismo, sim, Aline. Mas eu precisei do codinome Antônia - do latim "de valor inestimável" - para dividir minhas sessões públicas de escrita-terapia. O que divido aqui é o melhor e o pior de mim, tudo que aprendi no divã e botando o pé na estrada. Não para que dizer como você deve ver a vida. Mas para que essa eterna busca pelo auto-conhecimento, não seja uma jornada solitária, ainda que pessoal e intransferível. Então fique a vontade pra dividir o divã e algumas boas histórias comigo. contato@antonianodiva.com.br

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