O mundo ontem foi tomado pela dor da despedida de um artista único. David Bowie, vanguarda como apenas ele sabia ser, em seus últimos momentos despediu-se antes mesmo de fechar os olhos, presenteando fãs com o hit Lazarus, do álbum Blackstar. Em tom melancólico e nostálgico, sua música anunciava a saudade antecipada do camaleão do rock. Nossa saudade. Sobre o talento, não ficou nenhuma dúvida. Bowie foi ousado, livre da expectativa do mainstream. Ele não flutuou nas tendências – ditou-as. Influenciou o cenário musical, as artes, a moda. Fez contribuições sociais, questionando paradigmas, discutindo comportamentos. David não era deste mundo, talvez por isso precisasse do alienígena Ziggy para habitar entre nós. Ora, e quem nunca se sentiu um extraterrestre por aqui, não é mesmo?
Foi pensando nisso, nesse sentimento de não-pertencimento, que fiquei mais alarmada com a despedida de Bowie. Perdíamos um representante dos misfits, dos underdogs, dos outcasts. Óbvio que a partida de alguém do calibre de Bowie, por si só, geraria uma grande comoção. A minha surpresa, entretanto, foi que na paralela do talento, Bowie foi saudado por sua excentricidade. Sua diferenciação. Bowie foi (e seguirá sendo) comemorado por sua liberdade, pela alma alforriada, pela mente emancipada do resto do mundo. Quem de nós não gostaria de tal independência? Comportar-se atendendo aos desejos, mais que às ponderações e limitações de outrem? Pintar o rosto com o abstrato do sentir, ao invés do regulado da moda? Amar quem bem entender. Eu invejo Bowie. Aliás, invejo e me desconserto com o efeito dele.
Nesse processo de despedida de uma estrela de brilho único, vi gente que apoia a androgenia de Bowie, mas não suporta os transexuais. Reparei certo antagonismo no processo. Não era Bowie que tanto celebrou a transfiguração, com suas blusas de mangas bufantes, seu colorido vibrante, seu batom neon? Li declarações de amor à distinção do cantor, dos mesmos indivíduos que descriminam as diferenças nas “pessoas comuns” – seja pela cor da pele, pela opção sexual, o dito “lugar de homem” ou “lugar de mulher”. E me peguei pensando: como alguém que transitava livremente entre tantos contextos pode ser tão aclamado, pelo mesmo grupo que adora apontar as diferenças? Pelo roqueiro que faz mal juízo do cara que curte sertanejo apenas porque seus gostos divergem. E não foi Bowie que uniu o rock ao punk, ao blues, ao folk? Esquecemo-nos que ele não dividia estilos, misturava-os, somava e então multiplicava. Não seria essa sua maior lição? O aprendizado a partir das diferenças?
Se olharmos a fundo a trajetória de todo criativo como ele, veremos que a vanguarda é um lugar muito solitário. Antes do reconhecimento de Bowie, ele era apenas um grande potencial incompreendido, um peixe fora d’água. Aos 17 anos criou um grupo de apoio ao cabelo comprido, estilo depreciado na antiga Inglaterra. Queria suas escolhas respeitadas – e esse processo é sempre dolorido pra quem é diferente, ou ousou nadar contra a maré. Quem dita tendência, é também quem recebe crítica, e desta forma acaba optando muitas vezes pela introspecção antes de qualquer extroversão. Lady Gaga usou a música para tratar de sua depressão, ansiedade e falta de aceitação própria. Lionel Messi recebeu ontem (e pela 5ª vez) o troféu de melhor do mundo, sendo que o futebol foi a ferramenta usada inicialmente para vencer o autismo e a baixa estatura. Ou seja, gente que teve que superar as próprias diferenças para poder dizer para o mundo, “Sou diferente sim e eu arraso. Chupa essa manga!”. Criaram realidades dentro de seus próprios termos para vencer, inspirando-nos. Ok, talvez você não queira ser um rockstar ou ganhar a Bola de Ouro do futebol mundial. Mas quem de nós não luta diariamente por aceitação, para produzir, criar, ser feliz, gozar, amar? Bowie olhava o mundo de forma diferente (caralho, o cara tinha inclusive um olho diferente do outro!). Quem de nós tem essa coragem?
Ao invés disso mantemos nossos gostos, comportamentos, sexualidade, reprimidos e rotulados. Cultivamos uma aversão e medo a tudo que é diferente – precisamos logo responder a estas equações que nos desconsertam, ao invés de festejar a novidade. Dizemos-nos bem resolvidos, mas falamos mal da saia alheia, logo acusando “puta”, desconfiamos de olhos pintados, declarando “emo”, “gótico”. E neste mesmo universo então, temos o garoto de Brixton que foi reconhecido por sua estranheza, tanto quanto foi pelo seu talento na música. Excentricidade – veja bem, me parece que combina com sucesso, holofotes, plateias. Então por que não combina com o anonimato? Estranhos anônimos são apenas estranhos, deslocados, preteridos. O meu lado travesti e dramático chora por essa inversão de valores. Talvez não por mim, que já aprendi com a hipocrisia da nossa sociedade, mas fico pensando nas novas gerações de seres peculiares e excêntricos que vem por aí. Meu irmão Mateus, é um pequeno exemplo deste desafio. No auge dos seus cinco anos ele é obcecado pela cor rosa e por tudo que brilha. Devo ensiná-lo de que o mesmo mundo que adora a singularidade de David Bowie vai achar que ele é estranho, desajustado, desconectado? Não, eu gosto de pensar que meu irmão terá a alma de artista como eu, e beirando a rebeldia vai exaltar uma vida colorida e excepcional, como ele julgar melhor. Espero que ele aprenda que ser diferente pode ser fantástico. E torço que o mundo se torne um lugar mais tolerante para que ele possa ser diferente, assim, de boa.
Ou melhor, de Bowie.
Fim da sessão
PS: Numa pauta mais pessoal, o meu irmão Leonardo tinha uma expressão que ele adorava que dizia “Vai, Carlos, vai ser gauche na vida”, em referência ao “Poema de Sete Faces” de Drummond, onde gauche pode ser traduzido como “esquerdo”, “diferente”, “incompatível” ou “deslocado”. Dias antes de falecer, o Léo entregou ao Mateus um presente – um microfone do filme Frozen, colorido de rosa, roxo, azul e prateado brilhante. Acho que esse era o jeito dele dizer pro Mateus, “Vai meu irmão, vai ser gauche na vida”. Vai ser Bowie na vida.
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