Acordei hoje e dei de cara com a minha mãe animada com sua mais recente missão:  retirar a esteira elétrica de dentro do seu quarto – um equipamento que nos últimos meses (anos!) servira como varal para as toalhas de banho  –  e leva-lo para o andar de baixo da casa, onde eu e o personal trainer recém contratado, pudéssemos dar novo sentido aquele trambolho.

A tarefa não era nada simples. Julgamos que havia mais esteira do que porta, na nossa primeira avaliação. Analisamos ângulos e medidas com incredulidade: “como essa bosta entrou aqui? Pois se entrou, tem que sair!” – concluíamos com mais leviandade do que eu gosto de admitir.  O conceito era simples, é claro, mas a prática envolveu dedos amassados, dores nas costas e uma briguinha básica entre duas pessoas cansadas de gerenciar 3 toneladas de esteira. Tiramos a desgraçada do quarto, e a aposentamos logo ao lado do sofá da sala – 3 lances de escada de distância da nossa meta original, na garagem.

– “Acha que ela fica bem aqui na sala?”

– “Claro. Realçou o quadro da parede.”  Concluímos as duas sentadas no chão, lavadas em suor, encarando o amontoado de ferro, plástico, engrenagens e frustrações.

A esteira da minha mãe era como se fosse um elefante branco assentado na sala, gozando de sua inutilidade. Um elefante branco que ocupava lugar nas nossas vidas, e pouco contribuía. E a cada minuto a mais que sua grandiosidade improdutiva permanecia ali, eu me ocupava em analisar a quantidade de tralha que arrastamos vida adentro, e que nos trazem pouco ou nenhum sentido.

Eu nunca fui aquela pessoa vidrada em bens materiais. OK, eu tinha minhas blusinhas preferidas, o brinco da sorte e um tênis com o qual eu seria capaz de enfrentar o apocalipse. Sempre fui fã de grandes faxinas, mas guardava diários – ainda que estivessem tomados pela umidade. Eu sou aquela que se desfaz de um item quase novo, mas guarda em um saquinho transparente o chiclete (blé)  mascado que tinha na boca no dia do meu primeiro beijo. Eu tenho a tendência de transferir sensações para objetos inanimados. Uma tentativa desesperada de transformar memórias em algo tangível – como eu já declarei em algum momento por aqui.

Mas tem algo na quinquilharia que acumulamos que me incomoda. A gente guarda calças que um dia poderá usar, mas joga fora do nosso convívio, algumas pessoas que já amamos . Talvez porque julgamos que reduzir a nossa massa corpórea em 6 números de calça jeans seja mais viável do que manter por perto a lembrança de um amor que já não cabe mais. Não é estranho? Se apegar a peças de roupas que nunca mais vão servir, e descartar por completo pessoas cujas memórias um dia serviram perfeitamente? Por que acumulamos tanta coisa inútil?

Livros são ótimos exemplos de como aprisionamos a liberdade que poderia ser transitória. Eu nunca conheci alguém que precisasse de uma biblioteca, a não ser pela ostentação de preencher prateleiras.  Então por que não colocamos nossos livros em movimento?  Assim eles poderiam ter uma nova chance de seduzir outros leitores, ao invés de serem condicionados a virar comida de traça. E aqui não estou sugerindo que vivamos em completa desestrutura ou desleixo com nossos pertentes. Mas pra que a gente precisa de tanta tralha? Por que não olhamos para nossos bens materiais como o resto da nossa vida – fluída, mutável, temporária?

Me arrisco a dizer que, se tem um legado que minha vida na estrada deixou comigo, foi esse: viaje leve. E aprendi isso da forma mais literal, quando cheguei na minha primeira parada dos dois meses que eu havia planejado passar de mochila nas costas, eu simplesmente não suportava mais o peso da minha bagagem. E lá, em um hostel em Brussels, eu deixei pra trás o meu par de botas preferidas e uma calça de jeans nova – ambas, pesadas demais para as minhas costas. E confesso que foi um desapego difícil na primeira instância, mas a leveza que proporcionou, ajudou-me a seguir pelo restante de todo o caminho. Colecionando histórias, muito mais do que coisas.

E pegando o exemplo mais extremo de desapego que eu possa ter, reavaliei mais uma vez todos os pertences deixados pelo meu irmão. O livro que fez sentido pra ele. O perfume que deixou fechado. A jaqueta grande demais para me servir. E nesse processo, eu reconheci a importância de todos estes objetos, escolhi alguns poucos talismãs importantes, e coloquei os demais itens em movimento. Porque se a vida é mudança, transição e ascendência, não vale mesmo a pena colecionar âncoras.

Desapego é necessário. É um descarrego.

Porque a vida precisa de espaço. Do contrário sinto que seremos cada vez mais atolados de passado, atravancados  por obstáculos, abafados por elefantes brancos. Como a esteira inútil da minha mãe que agora me encara com pinta de reprovação enquanto disserto sobre o desapego. Me olhando do alto de toda a sua plenitude enorme e ociosa. E que sequer destaca o quadro na parede,  diferentemente do eu alegava mais cedo .

Decidi que a esteira vai pro OXL. E eu vou correr na rua. Afinal, faz bem mais sentido pra mim ir a lugares, do que sentir que estou correndo num lugar só, acumulando coisas e pó.


Fim da sessão.

Antônia no Divã

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