Crônicas

Enquanto der para sorrir (pela janela)

No marco dos meus 60 dias de quarentena, não tem mêsversário porque eu não sinto que tô crescendo em nada, além de pra fora das calças. Não meditei até encontrar Nirvana, não comecei a minha horta orgânica vertical, e aquele livro que eu prometi pra vocês segue apenas com capa e um ideal – ambos lindos, mas longe de ser um projeto que dê orgulho. Eu não enxerguei a iluminação na reclusão. 

Entretanto, algo sobre a minha percepção de realidade me ajuda a esticar o pescoço pra fora da névoa de incerteza e das más notícias por um minuto. Eu me refiro ao meu prazer quase sexual de observar o comportamento alheio. Claro, eu sigo invejando as vidas das famosas através do Instagram. Eu continuo batendo boca no Facebook junto com o meu café da manhã. Mas entre acompanhar o cancelamento da Pugliesi (ou do mais recente influencer sem noção), e o novo momento House of Cards da República das Bananas, eu me pego encarando a janela. E lá, um novo universo acontece. 

Semana passada, eu e a Helen, a garota que mora comigo, passamos 15 minutos penduradas no parapeito da janela, aos gritos, tentando distrair o gato do vizinho para que ele não matasse o passarinho que acabara de capturar. Em dias normais, nós sequer teríamos notado o gato do vizinho, mas agora nós sabemos toda a sua rotina, e até – veja só – nos ocupamos dela. Ainda tratando-se do reino animal, observamos constantemente o jardim do lado, ansiosas pelo retorno da raposa que nos dias mais quentes toma banho de sol jogada entre as flores. Eu nunca tive tanta inveja de um bicho. Aliás, minto. Eu tenho acompanhado também uma família de 3 periquitos verde-tropical que visitam a árvore em frente a nossa cozinha. “Verde-tropical” é meu jeito de dizer que eles são muito coloridos para pertencerem as bandas inglesas, então eu tenho comigo que eles estão aqui a passeio pela Europa, enquanto nós vemos a vida da nossa gaiola. 

Ontem o gato do vizinho cagou dentro do nosso cinzeiro que fica na rua, e NADA me convence que não tenha sido uma retalhação sobre a nossa tentativa de salvar o almoço dele. 

Mas nem só de bicho eu filosofo. Bicho-homem também me faz viajar. O casal do flat de baixo tem parte da sala coberta por um teto de vidro e luzinhas que simulam um céu estrelado, e eu passo horas imaginando que a gente vai virar amigos. No aniversário da Helen, eles encheram o hall de entrada que compartilhamos de glitter e foi assim que eu decidi que um dia esvaziaremos muitas garrafas de proseco juntos. Nas quintas-feiras, pontualmente às 20h, toda a minha rua sai para a porta da frente para bater palmas e panelas em homenagem ao sistema público de saúde, e eu sempre esforço a miopia para enxergar os sorrisos até onde a vista alcança. Sinto que por 5 minutos a gente é uma comunidade. E não um coletivo de pequenas ilhas. O meu momento preferido, entretanto, é um show de uma pessoa só, quando o Sr. Wilson (não sei se o nome dele é Wilson, não deve ser) passa com seus muitos anos de idade e um radinho de pilha no último volume cantarolando por trás da máscara, a canção da vez, que varia entre um rock antigo ou pop atual. Ele abre os braços no ar, e canta do alto dos pulmões. Quando ouço ele vindo, eu pulo na janela da sala, bato palmas, grito “uhuuu”, mas ele nem me nota. Segue com os cabelos ao vento pela rua, como o rockstar que é. 

A minha rotina de idas quinzenais ao supermercado é também uma tragédia cômica greco-romana por si só. Depois de eu superar a minha crise de ansiedade para chegar até os mantimentos que preciso, parece que é só botar o pé no corredor para ele lotar de elementos do grupo de risco como se fosse uma rave da terceira idade. Eu desvio de forma educada, enquanto leio (a dois metros de distância) a validade do rótulo da manteiga para uma senhora. Na volta das compras, com 3 sacolas cheias e morro acima (claro que tinha que morar no topo de uma ladeira), o óculos embaça, a máscara tapa as minhas vias aéreas sedentárias (eu já praticava o sofáismo antes da quarentena) e eu já arrependida das compras me pergunto se aquele martírio realmente configura como “saídas essenciais”. Repouso as sacolas no chão no intuito de amarrar os cadarços, para um limão escapulir e descer rolando metade da ladeira. 

Meu sistema imunológico cutuca a minha culpa, e lá vou eu buscar o caralho do limão. Nunca tive tanta raiva de uma fruta. 

Nesta nova rotina eu descobri que tenho uma tigela preferida, já organizei o freezer umas trezentas vezes, e lavei as cortinas pela primeira vez (minha e delas, possivelmente). Dois dias por semana eu tenho ensinado inglês para meus irmãos a minha mãe, pensando que vá que um dia a gente possa cruzar fronteiras novamente. Nessa reclusão também já matei vários banhos e duas plantas por excesso de água. Não decidi se minha tendinite é por conta do trabalho ou da siririca. Eu sigo parando para ver o pôr do sol, com o mesmo embasbacamento de quem o assiste da beira da praia. Nas segundas-feiras eu sempre rezo, mesmo sem querer, agradecendo a minha sorte e proteção. E desejando que estas bençãos se espalhem e protejam mais gente. Sua saúde, e também, sua alegria. 

Eu não sou nenhuma desavisada. Não tomei a mesma droga que a Regina Duarte, visto que eu sei que o mundo tá uma bosta. O que tô fazendo é apenas uma manutenção de crise. 

Porque no meio desta desgraça toda, onde amores viram o pior tipo de estatística, onde o medo segue tão grande quanto o inimigo invisível. Enquanto eu seguir com o saudade dos meus abraços preferidos. Enquanto minha companhia mais constante seja o tédio responsável, me mantendo em casa até a gente voltar pro mundo normal (será que era normal?). Enquanto tudo isso não acontece, eu ei de sorrir sobre o que der. E torcer por todos nós. 

Todos não. O gato do vizinho que se foda. Agora é guerra, seu filho da puta. 

Fim da sessão.

Antônia no Divã

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Antônia no Divã
Tags: quarentena

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