Da quarta-feira de cinzas, eis que surge um ano novo. Porque vamos combinar que desde que Brasil é o país do carnaval, a gente precisa ver a Mangueira entrar pra assumir que o ano começou. E eu notei que o ano de fato virou ano, porque tá cheio de gente perguntando como que tira purpurina no fígado na minha timeline. Ou onde reciclar tiara de unicórnio.

Sei que o ano começou porque minha advogada finalmente respondeu meu e-mail, ignorado durante uma semana. E pela quantidade de suco verde que passou nos stories do meu Instagram. Não tá fácil para ninguém se recuperar de um final de ano de excessos. Meu pai acabou de sair daqui com a dieta que a nutricionista receitou embaixo do braço “hoje eu entro na linha”, prometeu. “Que bom, véio” – sorri com compaixão, “quer uma cópia?”, ele pergunta, afinal, o meu carnaval também acabou.

Esse carnaval foi esquisito, e ao mesmo tempo igual a todos os outros. A gente falou de política na mesa do bar, vibrou com os protestos na avenida, apontou o dedo para o grupo mais manipulado e pensou, “agora vai!”. “Chupa Temer Vampirão!”. Invadimos o aeroporto no Rio de Janeiro, o povo tomou as ruas. Tomou? Tomou as ruas, brincou, deixou tudo cheio de lixo, e pensou “esse governo do Rio tá uma merda mesmo” – depois tirou uma selfie pra mostrar a situação, mas perdeu o celular para o garoto que passou correndo gritando “perdeu playboy”. Não é fácil ser folião.

Mas nós temos esse talento nato de ser folião mesmo. Perguntava comigo assistindo ao carnaval televisionado – entre uma discussão se foi ou não foi golpe – da onde surgiu esta festa tão brasileira. Embora não tivesse a resposta na ponta da língua, sei dizer direitinho que meu primeiro baile foi aos 5 anos, veja como o evento marca uma vida. Fantasiei-me de Xuxa, com os cabelos descoloridos. Eu lembro que eu não sabia bem o que comemorava aquela festa, mas eu amava confete e serpentina, e quem precisa de lógica quando se tem confete e serpentina? Penso que até hoje é assim. Quem precisa de lógica quando se tem confete e serpentina?

Cada vez que uma amiga posta foto com cílios postiço e uma pá de alegorias na cabeça, meu reflexo é esbravejar “por que não dá pra se fantasiar e ser feliz o ano todo?”.

Aí eu lembro que carnaval é aquele período de extravasar mesmo, e talvez por isso seja prudente que ele tenha um fim. Afinal é a fase dos maiores porres da vida. Patrocinador da ressaca moral do ano todo. E justificativa para o grande número de aniversariantes em novembro e dezembro. A gente restringe tanta coisa nas nossas decisões, mas é o bloco ou uma vergonha passar durante o carnaval, que a gente já se agarra sem pensar duas vezes. Atire o primeiro body-sem-shorts quem puder julgar.

Brasileiro mesmo adora se superar. Por isso a gente precisa celebrar as cinzas. Porque sabe que o ano promete um 7×1 por dia, afinal é ano de eleição e vai sobrar patos na avenida deste Brasilzão. A gente entende que merece mesmo brincar até cair, para depois levar as coisas a sério. Não tem povo que faz marchinha como a gente. Olha lá o ano letivo das crianças começando só depois do carnaval. “Por que, mana?”, me perguntou o Murilo, que aos 7 anos tá doido pela segunda série. “Ah Murilo, porque o ano mesmo só começa depois do carnaval”. Vai entender. A gente precisa deste processo de queimar numa pira de folia para renascer dramaticamente em um novo ciclo.

E aqui não cabe nenhuma crítica, apenas uma constatação. Uma constatação de quem também acordou com a sensação de quem tá atrasada para tudo que prometeu no réveillon. De quem precisa ir atrás da própria dieta, seguindo o exemplo do meu pai. Daquela que tem reunião à tarde, e não consegue tirar a purpurina do corpo. Porque a gente se acostumou a ser fênix na vida. Surgir das cinzas numa versão melhor para o ano que finalmente inicia.

Pelo menos até o carnaval que vem, em que a gente vai de novo se enterrar de alegria, e das cinzas, surgir em forma de sensatez. Sensatez ou unicórnio, claro, caso você seja adepta do enterro dos ossos.

“Alá-lá ô ô ô, mas que calô ô ô ô…”

Fim da sessão

Antônia no Divã

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Antônia no Divã

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