Crônicas

A vida não tá nem aí pro seu planejamento

em
6 de abril de 2021

Oi. Tudo bem? Quanto tempo né? A última vez que apareci por aqui era um outro ano. Escrevia para vocês da segurança do meu quarto, sem muitos planos para um futuro incerto frente a pandemia. Era início de outubro, quando o telefone tocou com o meu pai do outro lado da linha: “Os médicos acharam um bloqueio sério em uma veia do meu coração, preciso me operar. E em breve.” Duas coisas foram surpreendentes nesta situação. Por um lado, eu já sabia que enfrentaríamos isso, em um episódio da minha vida havia decidido investigar o futuro. Por outro, mesmo eu que tenho a mente pronta para executar planos com enredos muito bem elaborados, me via agora, fodida. 

Sim. Fodida. Porque todo passo dali pra frente era imprevisível e eu tinha muito mais perguntas do que respostas. Conseguiria sair do Reino Unido? Conseguiria entrar no Brasil? Chegaria a tempo da cirurgia? Meu pai sobreviveria a cirurgia? Eu sobreviveria sem meu pai? E para complicar tudo, o risco eminente de pegar Covid em um país sem o mínimo de controle da doença. Fiz aquilo que toda mulher madura, inteligente e independente faz quando tem dúvidas. Liguei pra minha mãe. Não porque a minha mãe teria as respostas sobre restrições de fronteiras ou regras de quarentena. Mas porque eu tava com medo, e precisava dar uma boa chorada antes de pensar.

Penso que por vezes, as pessoas menosprezam o poder de uma boa chorada. E fato é que a gente precisa tirar a emoção que inunda os olhos, para enfim voltar a enxergar os caminhos. E foi exatamente o que eu fiz. Admiti que tava morrendo de medo de tudo e dei uma boa chorada antes de começar a planejar meu retorno para perto da minha família. 

Depois disso, tudo aconteceu muito rápido. Enfiei a síndrome do pânico na mochila, peguei minha máscara, visor protetivo e álcool gel, e enfrentei as 11h de viagem me concentrando pra não ter um ataque a cada passo e mantendo as mãos longe de tudo. Na chegado no aeroporto, ninguém me esperava, ora, como era de se esperar. E só Deus sabe como eu amo um encontro de aeroporto. Aluguei um carro e segui solitária em direção ao meu isolamento no sítio do meu pai. Dias se passam e ele finalmente aparece. Todo fardado, como se fosse um astronauta. Eu visto a minha proteção. Distância e nenhum abraço. 1 ano sem se ver pessoalmente, e agora 2 metros nos separam. Se fosse nossos últimos momentos juntos, eu sequer teria o tocado. O medo de nós dois é paupável. 

O primeiro teste de covid (dos 12 que eu viria a fazer na minha passagem pelo Brasil) vem negativo. Decidimos não arriscar uma aproximação prematura por conta da janela imunológica, e pai e eu seguimos mantendo a distância, buscando aproximação através de conversas significativas. Meu pai verbaliza pela primeira vez na vida que meu lado viajante não está tão errado, e constata que ele mesmo agora encara uma vida de estrutura financeira tranquila, e saúde escassa para aproveitar as coisas do mundo. Engasgo por trás da máscara, já que minha independência nunca escondeu o desejo que tenho pelo reconhecimento dele. 

O dia da cirurgia chega rápido. Já a cirurgia se arrasta pelo que lembro uns 4 anos. Apesar disso, algo em mim diz que vai dar tudo certo. Decido confiar. O procedimento termina. 3 pontes de safena e música no Fantástico. Sou avisada de que o visual dele é difícil de encarar. Mas nem isso me prepara. Ao entrar na CTI, a cena que nunca esperei ver de novo, se repete na frente dos meus olhos. Alguém que amo deitado, sem cor, sem temperatura, sem consciência, sem vida. Sou tomada por um gatilho de pânico. Não consigo respirar. Eles são tão parecidos, meu irmão e meu pai. Está tudo tão parecido, eu sozinha em desespero. Sinto que o meu coração que vai parar. 

“Deus, tu não faria isso comigo de novo.”

A enfermeira encosta no meu braço, sensível ao desespero que brota dos meus olhos, cobertos por tanta proteção e desamparo. “Ele vai ficar bem, mana. Pode ficar tranquila.” 20 minutos se passam e posso ver a cor dele voltando, a temperatura de suas mãos passa a aquecer as minhas. Tubos são tirados de lugares onde não queremos ver tubos. Ele parece confuso. Eu pareço confusa, possivelmente. “Pai, sou eu, tu tá me reconhecendo?”. Ele pisca duas vezes e sorri, como quem me diz o seu costumeiro “fica tranquila”. Seu jeito de me tranquilizar, apesar do talho no peito e do medo que sei estar sentindo. 

Um longa recuperação começa. De saúde e possivelmente da nossa relação. Porque não tem nada como a perspectiva da morte, para a botar a vida em cheque-mate. Nossas decisões na balança. E esta foi uma das grandes lições que o ano vinha a me ensinar. Que mesmo protegida na reclusão do meu quarto, nunca imaginava quando seria obrigada a enfrentar o mundo para apoiar quem eu amo. E que mesmo com tantas chances de tudo dar errado, a gente finalmente agora gozava de um bocado de sorte.

Então de fato, a vida não tá nem aí pro seu planejamento. O lance é estar preparado para improvisar. 

Fim da sessão.


Ps: Foram 5 meses de Brasil, deixando filhos congelados num freezer, 15kg pra trás, cinzas ao vento, mudanças físicas, espirituais e muito aprendizado. Fica pertinho que o divã está de volta. Fiquem seguros de onde quer que estejam.

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5 Comments
  1. Responder

    Mirna

    7 de abril de 2021

    Saudades de ti! Espero que seu pai esteja em plena recuperação. Bjos no seu coração ❤️

  2. Responder

    Rute Duarte Da Silva

    7 de abril de 2021

    Que bom que voltou, suas palavras escritas sempre cheias de emoção e afeto me emocionam.
    Espero que o projeto livro, esteja de pé.
    Vida longa e cheia de saúde para todos…
    É visível os 15kg deixados pra trás, que venham novos dias cheios de saúde e esperança!!!!

  3. Responder

    Dulce

    7 de abril de 2021

    Seja super bem vinda! Deitar nesse divã e conversar com você, estava fazendo falta!!! Beijos e que inveja boa de você estar em Londres! Abrace essa Cidade que amo, por mim!!! Saudades!!!

  4. Responder

    Maria Eliane de Moura

    6 de abril de 2021

    Senti falta dessas sessões. É bom saber que você e os seus estão bem. Abraço.

  5. Responder

    Leonara

    6 de abril de 2021

    Ahahaha que bom que voltou a escrever. Que bom que você e e seu pai estão bem. não entendi a parte dos “filhos congelados no freezer” rsrsrs
    Emagreceu 15kg aqui no Brasil? Que chic… Também preciso

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Aline Mazzocchi
No divã e pelo mundo

De batismo, sim, Aline. Mas eu precisei do codinome Antônia - do latim "de valor inestimável" - para dividir minhas sessões públicas de escrita-terapia. O que divido aqui é o melhor e o pior de mim, tudo que aprendi no divã e botando o pé na estrada. Não para que dizer como você deve ver a vida. Mas para que essa eterna busca pelo auto-conhecimento, não seja uma jornada solitária, ainda que pessoal e intransferível. Então fique a vontade pra dividir o divã e algumas boas histórias comigo. contato@antonianodiva.com.br

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