Apoio

A filha de alguém

em
31 de maio de 2016

Quando eu tinha uns 9 anos, o meu primo de 14 me fez sentar no colo dele. Ele me disse que era a nossa brincadeira secreta, um “futebol humano”, jogo em que eu era a bola, e ele me segurava sentada bem em cima da cintura dele, antes de me lançar para frente como um jogador faz em um impedimento. Eu nem sabia o que era impedimento, e muito menos como impedir aquela brincadeira. Aconteceu uma vez só, e eu odiei como eu me senti. Contei para a minha mãe, que prontamente tomou as providencias. Deve ter conversado com a minha tia, pois o episódio nunca mais se repetiu. Hoje o meu primo tem uma filha menina. E fico pensando se ele teme que um primo também brinque com ela, do jeito que ele brincou comigo.

Quando eu tinha uns 12 anos, eu comecei a ouvir de um tio que eu estava ficando “gostosinha”. Eu não sabia nem da onde ele tirava aquela expressão, pois dos meus seios inexistentes e da minha cintura sem curvas não devia ser. Lembro-me do desespero da minha avó abotoando todos os botões do meu vestido, rapidamente depois do banho, porque mocinha não podia mostrar as costas. Não entendia como as minhas costas ofendiam a minha castidade, ou a religiosidade da minha avó. E muito menos, não entendia como os meus botões eram pecaminosos, enquanto todo mundo achava o apontamento do meu tio normal. “Vai dar trabalho essa minha sobrinha!”, ele dizia enquanto dava um tapa na minha bunda. Eu odiei todas as vezes que isso aconteceu, e meu pai, filho do patriarcado, achava que era só um elogio, enquanto a minha mãe bufava. Hoje meu tio tem uma filha menina, e fico pensando se ele gostaria que outro tio comentasse ~insistentemente~ como ela é “gostosinha”.

Aos 14 anos tive o meu primeiro namorado, cujo relacionamento tinha orientações claras da minha mãe para não evoluir em nada que eu me arrependesse, ou pelo menos, nada sem antes conversar com ela. A minha mãe nem imaginava que eu morria de medo de perder a minha virgindade, e por conta disso ela não precisava se preocupar comigo. Em um almoço de família na casa do meu namorado, o meu então “sogro” perguntou ao meu namorado se ele já estava “comendo essa vaca” na frente de todos os convidados. Todos riram, inclusive o meu namorado. Eu quis sumir pra dentro do meu hímen intacto. O meu sogro na época tinha uma filha um pouco mais velha que eu. Eu sempre me perguntei se ele se preocupava com o filho ou pai de outro alguém, comendo ou comentando sobre a virgindade da filha dele em um almoço de domingo.

Aos 21 anos eu tive o meu primeiro relacionamento abusivo. Ele gritava, humilhava, e ficava violento. Usava o meu dinheiro sem nenhum constrangimento – “depois eu te pago” ou “tu ganha mais, pode pagar pra nós dois”, eram as justificativas que eu ouvia. Quando ele não queria transar, alegava que eu estava ficando gorda, e eu, que começava a ter um corpo de mulher, tive a autoestima destruída. Eu me afastei das minhas amigas e da minha família por vergonha dos abusos constantes. Ele conseguiu me convencer que era a melhor pessoa do mundo pra mim. Roubou todos os meus sorrisos de conquistas, alegando que eu “sempre tinha que me aparecer”. Em certas ocasiões, ele segurou meu pescoço e torceu meu braço. Eu mesma me tornei arisca como um gato escaldado. Ainda assim, ele vivia me dizendo que me amava como ninguém. Foram anos de abuso ainda que eu fosse bem instruída, bem nascida. Tempos depois da minha libertação daquele relacionamento, descobri que meu ex tornara-se tio de uma menina linda. Desde então fico pensando se ele gostaria de alguém como ele para “amá-la como ninguém”, do mesmo jeito que ele me “amou”.

Depois de uma vida namorando, tive alguns momentos de solteirice, que me levaram a ter relacionamentos mais curtos e levianos. Em um deles, no meio de uma relação, o cara arrancou a camisinha do pênis dele, e entrou em mim sem proteção e sem me avisar. Ele achou que tinha o direito de decidir por mim os riscos que eu podia correr. Meses depois, encontrei-o numa festa e fingi que não o vi, anojada da lembrança. Ele veio até mim e me perguntou em tom agressivo se eu era dessas de “dar para um cara e depois virar a cara”. Sorri constrangida e não consegui admitir em voz alta que a minha antipatia era fruto da invasão que ele tinha promovido. Tempos depois, estava saindo com outro cara, e passados alguns encontros ele decidiu que tinha intimidade suficiente para tirar fotos minhas pelada, enquanto eu dormia depois do sexo. Descobri as fotos usando o celular dele para chamar um táxi, com a intenção de não acordá-lo de seu sono de domingo (sim, como eu sou legal). Esses caras tinham irmãs, mães, tias, amigas, mas eu não era nenhuma delas. Eu era a filha de outro alguém. Irmã, de outro alguém. Talvez uma vagabunda, ou uma qualquer. Eu não podia ser só uma mulher, tinha que ser propriedade, objeto, descartável.

Na rua, sempre andei com medo. Dos tapas da bunda de caras de bicicleta, dos velhos tarados segurando o pau enquanto eu passava. Eu sempre odiei “fiu-fiu” de qualquer tipo. E de uns tempos pra cá, toda essa sensação de abuso constante começou a não caber mais dentro do peito. Eu comecei a enfrentar os atrevidos e encarar os bagaceiros. Eu passei a fazer barraco em festa, se alguém passasse a mão em mim. Eu cheguei a um ponto de tirar satisfação de um segurança de banco, que disse que ia “me chupar todinha” com uma escopeta na mão. Não bastava ser um homem, nojento, com duas vezes o meu tamanho. Ele mexia comigo sabendo que além de toda a opressão que ele inspirava, ele ainda estava armado. Não me calei, e não tenho mais me calado. Talvez eu esteja mesmo ficando maluca. Maluca, chata, feminista, revoltada. E eu estou consciente que eu posso ser todas essas coisas. Mas oprimida, nunca mais. Violada, nunca mais. Diminuída, nunca mais.

Na semana passada, em que todos nós tivemos que lidar a dor de uma jovem violentada por 33 homens, eu revivi cada um dos meus abusos – destes contados aqui, como todos os outros já vividos. Ironicamente, na mesma semana/feriado em que acorreu o caso, eu viajei para a praia na companhia apenas de homens, os meus amigos. Conversamos longamente sobre o caso, sobre as repercussões, e todas as formas de abuso que a gente precisava desconstruir. As piadas, os compartilhamentos, as posturas. Sempre que um deles ficava confuso sobre a cultura do estupro, eu botava a mãe no meio. Respeitosamente, claro. “E se fosse com tua mãe, essa situação?”; “E se falassem isso da tua irmã?”, “E se fossem fotos da tua amiga?”. Pouco a pouco, até mesmo as questões mais polêmicas, iam se enchendo de empatia. E conversando, a gente foi aprendendo juntos. Talvez em razão da enxurrada de conhecimento que se espalhou pelas redes nos últimos dias. Ou talvez porque com este caso, finalmente muitos dos homens – inclusive os meus amigos – se deram conta que toda mulher abusada, violada, humilhada, é sim, filha de alguém. Basta empatia para comover-se com suas histórias. Basta empatia para pôr um fim nisso tudo. Por todas nós.

Estupro nunca mais. Abuso nunca mais.

Somos todas filhas de alguém.


Fim da sessão.

https://www.facebook.com/quebrandootabu/videos/1117628378293548/

(vídeo - você deverá estar logado no Facebook)

Gatedo, se você não é parte da solução, você é parte do problema.

Denuncie:180

Palavras-Chave
SESSÕES RELACIONADAS
4 Comments
  1. Responder

    Anna Paolla Santos

    1 de junho de 2016

    Passei por diversas situações como as que vc citou, desde bem nova (seis, sete anos), incluindo uma com primo. Aprendi a me defender mto cedo e desde cedo também me preocupei com meus filhos (tenho um casal), pois apesar de saber que acontece mais com mulher, também acho que existe risco para meninos. E procurei ensinar o respeito sempre. Não aceito e não concordo com qq abuso. Nesse episódio da menina, exclui alguns amigos por não considerar correta a postura deles e tampouco ter conseguido mostrar que a empatia se faz necessária pois podia ser com alguém da família ou amiga ou quem quer que fosse.
    Posso ser o que quiser, desde que seja a minha escolha, nunca uma imposição, por isso sigo essa mesma linha de enfrentamento.
    Que um dia não precisemos mais nos preocupar por sermos somente mulheres.
    Bjs,

  2. Responder

    Ana Teté

    1 de junho de 2016

    Eu até me engasguei… Deu um nó, pq olhando a fundo nós sabemos bem quantos abusos sofremos e quantos deles “fingimos acreditar que não aconteceu”, a filha de alguém é mais fácil né?
    O problema é quando você descobre que esse alguém também é você.
    Linda a sua forma de luta e é por isso que sempre estou contigo. ??❤️?

  3. Responder

    Wal Reis

    31 de maio de 2016

    Ai, garota. Você sempre arrasa. Que coisa. Bem escrito, com conteúdo, sem ser dona da verdade e sem mimimi. Totonha: minha admiração eterna. Trinta e três beijos e abraços pra vc!

    • Responder

      Antônia no Divã

      31 de maio de 2016

      Vou querê-los todos! <3

DEIXE UM COMENTÁRIO

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Aline Mazzocchi
No divã e pelo mundo

De batismo, sim, Aline. Mas eu precisei do codinome Antônia - do latim "de valor inestimável" - para dividir minhas sessões públicas de escrita-terapia. O que divido aqui é o melhor e o pior de mim, tudo que aprendi no divã e botando o pé na estrada. Não para que dizer como você deve ver a vida. Mas para que essa eterna busca pelo auto-conhecimento, não seja uma jornada solitária, ainda que pessoal e intransferível. Então fique a vontade pra dividir o divã e algumas boas histórias comigo. contato@antonianodiva.com.br

PESQUISE AQUI