A noite nunca tem fim. – Por que a gente e assim?Cazuza / Roberto Frejat / Ezequiel Neves
Eu tinha 20 anos quando meus pais me fizeram participar de uma palestra em uma clínica de reabilitação. Eu estava sofrendo alterações constantes de humor, uma montanha russa, ora extremamente eufórica e agitada, ora deprimida e reclusa. Eles estavam convencidos de que eu sofria com algum tipo de dependência. E eles estavam certos… bem, quase certos. Na palestra, ouvi da orientadora “a cocaína é uma das drogas mais viciantes já inventadas” – ela fez uma pausa dramática olhando nos olhos da plateia – “Apenas uma dose já faz da pessoa um viciado, e a reabilitação é uma das piores de se enfrentar”.
Eu sabia que aquilo não era verdade. Havia uma droga mais letal que a cocaína. Uma droga propagada a luz do dia. Exposta nas artes e na história. Difundida em todos os níveis, todos os graus de educação e em todas as idades. É… talvez eu fosse nova demais para me ver viciada. O nome da droga que me viciou era AMOR. “Ai que bonitinho”. Não, calma. Essa não é uma daquelas historias. O amor que me viciou era tóxico. Amor tipo cocaína.
O Caio foi o meu primeiro grande amor. E como com qualquer outra droga, as primeiras doses são sempre de pura euforia. Você acredita que encontrou tudo que faltava para encarar a vida. Pra mim, o Caio era mais lindo que o sol. Talvez até mais importante que o sol. Eu podia viver sem o sol. Nunca sem o Caio. Acontece que o meu amor toxico não demorou muito para mostrar sinais de risco à saúde. A relação se tornou abusiva. Gritos, ofensas e ameaças viraram parte da nossa rotina. Eu entregava tudo que era meu ao Caio – tempo, dinheiro e atenção. Na troca eu ganhava doses homeopáticas de carinho, e doses cavalares de amor tipo cocaína.
Naquela época o Caio me convenceu que nunca ninguém me amaria como ele. Como uma viciada, eu acreditei. Eu tinha dores no corpo na abstinência dele, e implorava por mais doses. Ele me entregava, e depois assistia eu me deteriorando nos sintomas daquela dependência. Eu parei de sorrir. Assim como uma usuária de drogas, também passei a ter muita vergonha, me afastei dos meus amigos. Comecei a mentir pros meus pais. Eu queria sair daquele circulo vicioso, mas estava perdida. Não tinha reabilitação para o amor tóxico, amor tipo cocaína. Eu tentara inúmeras vezes. Mas eu sempre voltava. E a cada volta, uma queda maior naquela droga de vida. Eu perdia a fome e o sono constantemente. Eu estava sozinha, mesmo quando rodeada de gente. Eu estava sozinha mesmo que a dois.
Uma noite, depois de uma de nossas brigas cataclísmicas, me abriguei no chão do banheiro para chorar. Não perdoava o Caio como fruto do meu vicio, não perdoava a mim mesma por ser tão fraca. Como amar podia doer tanto, meu Deus? – eu perguntei desolada. Silencio. Deus não disse nada. O Caio, entretanto, gritava lá de fora que eu podia morrer chorando, mas que eu ia voltar pra ele. Eu sempre voltava. E ele estava certo. Eu sempre voltava. E lá eu fiquei no azulejo frio do chão do banheiro, abraçada nos meus pensamentos mais obscuros. Eu queria poder sentir uma dor maior que aquela, apenas para amenizar a dor do amor tipo cocaína. Eu queria ver o Caio se preocupar comigo. E no estagio de retaliação que eu me encontrava, aquilo tinha tudo pra ser o fim da minha historia. O chão do banheiro era o fundo do meu poço. De olhos fechados pedi a Deus mais uma vez que me mandasse uma luz. Silencio. Apenas o som do meu choro descontrolado. Eu não queria mais aquilo. E eu só via uma saída.
Abri os olhos, decidida pela tragédia shakespeariana. Algo extraordinário aconteceu.
Atrás do vaso do banheiro, percebi um objeto. Uma corrente antiga, enferrujada, possivelmente esquecida por um antigo inquilino daquele apartamento alugado. Puxei-a com cuidado, ao mesmo tempo em que tirei as lagrimas dos olhos para enxerga-la melhor. Quando meus dedos conseguiram finalmente desenroscar aquela corrente, percebi que não se tratava de uma corrente. Aquilo era um escapulário. Aquilo estava ali, durante anos, sem ser notado apenas para que eu o encontrasse quando mais precisava. Aquilo era um sinal. Aquilo era o inicio da minha reabilitação.
Por conta desta reabilitação, passei muito tempo analisando o amor tipo cocaína. Percebi que as pessoas não falam sobre esse tipo de amor por duas razões básicas: vergonha e desinformação. Naquilo que dizia respeito à vergonha, não é fácil ou bonito admitir pra quem se quer bem que é difícil livrar-se de um vício que te faz tão mal. Naquilo que se refere à desinformação, exatamente como com as drogas, em algum momento em nossa sublime ignorância nós glamuralizamos o sofrimento de amor. “Nossa, como é lindo sofrer de amor!” Veja Romeu & Julieta! Tome deste veneno! Fato é que o mundo tá tão carente de amor, que muitas pessoas aceitam qualquer tipo de amor. Até o que faz mal.
“Você vai ficar sozinha ao invés ter um namorado?”; “Amor a gente não joga fora, a gente conserta”; “Vai jogar um relacionamento de ‘X’ anos fora por isso, tá maluca?” Eu ouvi todo tipo de bobagem calada. Eu minguava a cada dia do lado do Caio, como uma flor sem água, secado sob a luz do sol que tanto admirava. Estaria mesmo maluca de abrir mão do sol? Bom, talvez eu estivesse. A minha reabilitação era puramente experimental, afinal eu – como a grande maioria de nós – sentia prazer em sofrer um pouquinho. Mais uma dosezinha, sabe? Mas eu decidi dar um pouco de sombra e água pro meu coração cansado. E com alguma dose de coragem eu disse não para o sol.
E assim segui a vida. Com amores e desamores, eu tentei desviar do amor tipo cocaína. Mas ele nunca esteve longe. Eu o vi acontecer, sorrateiro e avassalador, com algumas das pessoas que mais admiro. Amigas inteligentes e bem resolvidas, presas em seus próprios relacionamentos tóxicos. Os sintomas eu conhecia bem, sumiços, desculpas esfarrapadas, euforia seguida de depressão, vergonha, reclusão. Flores secas ao sol. “Logo ela, tão inteligente e informada”, as pessoas criticavam . Fato é que esse vício não escolhia pelas virtudes, ou defeitos. Mas pelo desejo, como todas as outras drogas.
Depois de um tempo, já mais “madura”, aprendi também que essa história de amor tóxico não era só coisa de mulherzinha, aquele sexo frágil. O meu namoro com Marcos, anos depois do Caio, foi bem tranquilo. Com idas e vindas eternas, não por não nos darmos bem, mais porque queríamos coisas diferentes da vida. E mesmo sem namoramos, era sempre bom ficar com ele. Bom, assim eu achava. Depois de dois anos de ficadas casuais, o Marcos me implorou aos prantos pra sair da vida dele. E eu finalmente entendi. Eu era o amor tipo cocaína dele. Ou seja, o amor era um vício imparcial também quanto a gênero.
“Mas como assim, que coisa maluca comparar o amor, essa coisa tão linda, com uma droga tão letal?”
Pois preste atenção. Olhe para os lados. Você provavelmente conhece algum usuário do amor tipo cocaína. Ali, com o traficante do amor sempre em speed dial, a uma conversa furtiva de whatsapp de distância, sempre na vigília do Facebook, esperando um momento de fraqueza para só mais uma dose. “A última”, é claro que eu tô fim. Quando você se dá conta, a pessoa sumiu do seu convívio, tem vergonha de retratar suas recaídas, inventa desculpas para os sinais de dependência e cria um comportamento de risco eminente em torno de sua obsessão. Clinicamente já foi comprovado, o estímulo da cocaína e do amor em seu cérebro é o mesmo. O abuso dele, provavelmente também.
As minhas amigas se reabilitaram ou estão se reabilitando a duras perdas e mensuráveis ganhos. Eu, como a ex- viciada que eu me considero, também vi que tudo tem solução. Assim como na dependência química, foi necessário muita disciplina e força de vontade para sair do chão daquele banheiro e tomar as rédeas da minha vida. Não é impossível, apenas complicado. E o apoio de quem gosta de você é fundamental O antídoto para este veneno, entretanto, hoje sei que é um só: amor tipo cocaína, se cura com muitas doses de amor próprio. E esse você não acha em lugar nenhum e em mais ninguém, apenas dentro de você.
Hoje em dia, involuntariamente ainda encontro o Caio em uma esquina ou outra por aí. Toda vez me vem um calafrio da espinha, um suador no corpo. Toda vez me orgulho em dizer não. Um dia de cada vez, claro.
“Canibais de nós mesmos. Antes que a terra nos coma. Cem gramas, sem dramas. Por que que a gente é assim?”
Cazuza / Roberto Frejat / Ezequiel Neves
Fim da sessão
Se tudo é potencial, por que diabos a gente tem tanta vergonha e medo de…
Vocês já me conhecem o suficiente pra saber que meu estilo de vida é meio…
Oi. Tudo bem? Quanto tempo né? A última vez que apareci por aqui era um…
A minha amiga Amanda é conhecida e reconhecida por uma pinta que ela tem em…
Eu tenho uma raiva de todas vezes em que comentei com alguém que fiz terapia…
Eu acho que realmente aprendi o real significado de estar muito disponível com os meus…