Crônicas

Dra. Ana, obrigada.

Quando eu era pequena meus pais me diziam que ser uma pessoa boa, era ser uma pessoa que se importava com os outros. Eu podia crescer e me tornar alguém bem sucedida, eloquente e letrada, mas se não soubesse o valor de ajudar o próximo, possivelmente pouco valor também teria. Eu cresci sendo voluntária sempre que podia. Meu irmão cresceu pra virar um médico ocupado em cuidar dos outros. E os gêmeos sempre tiveram idade suficiente – não importasse a idade – pra saber que todo mundo podia dar seu tempo ou estrutura para alguém que precisava. 

Hoje pela janela do Instagram eu vejo tanta gente boa explorando o seu próprio “E daí?” com a saúde alheia, que fico pensando “meus pais estavam certos”. Porque de nada adianta exibir um corpo lindo nas areias da praia, se o feriado também deveria ser de quarentena. Fico pensando em quanto talento que se escolheu exibir pela rua, quando a regra geral deveria ser a reclusão. Penso em todo cidadão mestrado, de carrão quitado e Frexeinet do lado que respeita a própria liberdade, mas não se importa com o esforço comum.

Fico me perguntando quem de nós é tão mais importante a ponto de ser a exceção pra toda regra.

Dia destes, raivosa com tanta angústia criada pelo isolamento e pela cretinice política, lembrei de mandar uma mensagem para a minha amiga Ana. A Dra. Ana. Pensei nela porque precisava me lembrar que existiam pessoas boas, dedicando-se a estarem na rua pelo bem da sociedade. Mesmo aquela sociedade que acha que não ouve a ciência, mas não abre mão do seu respirador. Imaginei que enquanto me ocupava com meus devaneios medíocres, a Ana devia estar em um hospital, exposta a pandemia. Cuidando de rostos estranhos, ajudando a soprar vida pra dentro de gente que nunca viu. Pensava comigo nas bochechas vermelhas da Ana, não pelos vinhos que costumávamos tomar no sofá da minha casa quando ela tava de folga, mas nas bochechas raspadas pelo contato com a máscara, talvez a última que ela tenha de um estoque miúdo quase inexistente. 

Engoli o desespero que me ocorreu e mandei pra ela um áudio transbordando positividade, amor e orgulho. Quando me respondeu, a Ana também transbordava. Chorava de brava porque tanta gente ainda não entendia a sua contribuição pessoal no caos que vivemos. Chorava de medo, porque não sabia se o SUS daria conta. Chorava de preocupada, porque era ela também a responsável pelas compras da mãe que (a ironia adora contribuir) pertencia ao grupo de risco. E aqui de longe eu tive vontade de abraçá-la. Queria que ela entendesse o quanto importante ela era, e a imensidão do seu impacto. Se eu me sentia impotente com a indiferença dos amigos que furavam a quarentena para o churrasquinho com a família, imagina a Ana, exposta a dor, a doença e ao fim da vida o dia inteiro, todo dia. 

Me faltou o ar. E o sintoma tinha como causa não o vírus novo, mas a velha doença do egoísmo que anda ao nosso lado. Vindo de gente que gostamos. Passei o final de semana todo pensando comigo o quanto valia o direito de ir vir, se ele sobressaia-se de forma horrorosa ao direito a vida dos demais? E anos depois, a lição que aprendi de pequena me fez ainda mais sentido. Que às vezes é melhor ser boa, do que estar certa. Que precisamos cuidar dos demais, e não apenas do próprio umbigo.

E que se a gente não aprender isso agora, quando mesmo que vai?

Faz quase 60 dias que eu fico em casa pela Ana. Aquelas do Brasil, da Inglaterra, e todas as Anas que diariamente deixam suas famílias em casa para cuidarem da nossa. E olhando para as fronteiras inexistentes nesta crise global, concluo que meu orgulho nacionalista não tá em nenhuma camiseta da seleção brasileira. Tá no jaleco dos homens e mulheres que lutam bravamente, mesmo quando tantos de nós ainda dizem “E daí” pro futuro que tá morrendo. 

Eu tenho orgulho de ser brasileira por causa da Ana. À minha amiga Dra Ana, obrigada. 

Fim da sessão.

Dra. Ana Carolina, heroína brasileira.
Antônia no Divã

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Antônia no Divã

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