Categorias: Crônicas

Ah, eu sou gaúcho.

Essa frase já foi o ecoar do orgulho dos pampas. Não importa onde você está ou em que tipo de congregação, haverá sempre um gaúcho a proclamar seu amor pela origem, pela tradição e orgulho de pertencer à terra de Getúlio Vargas, Bento Gonçalves e Anita Garibaldi. Ser gaúcho sempre pareceu a mais importante das causas. O Hino Rio-Grandense é ensinado até hoje nas escolas, decorado com amor e proclamado a cada clássico GreNal ou evento de mesma importância. Quem morou fora muitas vezes se pegou dizendo, “sou gaúcho, do Brasil” como sendo uma estirpe superior de brasileiro. Nosso chimarrão é dito como o melhor dos mates. Nosso povo dotado como o mais garrido. Nossas revoluções ditas as mais nobres, visto que o 20 de setembro ainda brilha orgulhoso acima de todos os porongos. Nossas façanhas se dizem valer de modelo a toda Terra.

Por que hoje em dia, no entanto, muitos de nós já não nos sentimos tão orgulhosos?

Ora, a minha querência já não é mais a mesma – por favor, tranquem as porteiras. Na semana passada abriram meu carro enquanto eu dava aula. Suspirei pelo prejuízo da porta estragada e segui minha vida como boa trabalhadora que paga seus impostos. Não me abati: “acontece!” – pensei comigo. Três dias depois do furto, entraram na casa da minha mãe, onde ela, os dois pequenos e o marido dormiam no andar de cima. No andar de baixo marginais fizeram a limpa, não deixaram pra trás nem a torta de bolacha das crianças, veja que audácia. Novamente não nos abatemos – estávamos todos bem, apesar das perdas materiais. Os vizinhos ouviram tudo durante a madrugada, ninguém chamou a polícia – talvez por não se importarem mais ou por terem a certeza de que ninguém viria ao nosso socorro. No terceiro episódio em uma semana, ontem abordaram meu pai, esposa, irmão e primo na saída do hospital. Não havia viaturas para enviar, não havia pra quem ligar. Ao arrancar os assaltantes rugiram ofensas como “Toma burguesia! Perdeu playboy!” acelerando o carro financiado rua afora. Meu irmão passa mal e convulsiona. A incerteza faz mal pra cabeça e parte o peito ao meio.

Dou-me conta que o lenço no pescoço já não identifica mais ninguém nas planícies ou serra deste estado – maragato; chimango; trabalhador; assaltante. Uma guerra sem rostos, sem propósito, sem autoridade. Nossa terra deixou de ser o berço de revolucionários, para tornar-se uma terra de ninguém.

Destranco o meu caminho com as sete chaves que uso entre a porta e o carro. Corro em direção a família assustada, como fiz na semana passada. No percurso choro não sei por que ou por quem. Se pela insegurança vivida nesta terra que já foi tão querida. Se pelos salários parcelados, ou pelas escolas fechadas, pelos trabalhadores que protestam em greve. Que liberdade é essa que comemoramos anualmente, em piquetes cada vez mais trancados com correntes e cadeados? Choro pelo sangue de farrapo espalhado pelas ruas. Penso em perguntar de forma bem sincera ao Senhor Governador, gringo da serra gaúcha como eu, o que é preciso fazer para que a segurança volte às ruas? Como reconstruir essa unidade federativa que já foi tão produtiva e agora é dada como quebrada? Flávio Dino disse no mesmo mês dos festejos de orgulho farroupilha, “Devo zelar para que o Maranhão não se transforme no RS”. Ora, será que já não somos mais “uma estrela brilhante na bandeira do Brasil”?

Fiquei pensando o que Nico Fagundes, poeta e tradicionalista, não está pensando lá de cima, sobre esta terra que ele amou desde guri. Talvez seja por isso que chove intensamente durante todo o mês no estado. Setembro foi inundado pelo choro do tio Nico e de tantos gaúchos aqui embaixo querendo poder gritar, de novo e mais uma vez com orgulho no lugar de lágrimas, “ah, eu sou gaúcho”. “Ah, eu sou gaúcho.”


Fim da sessão.

“Passam às mãos da minha geração.
Heranças feitas de fortunas rotas
Campos desertos que não geram pão
Onde a ganância anda de rédeas soltas

Se for preciso, eu volto a ser caudilho
Por essa pampa que ficou pra trás
Porque eu não quero deixar pro meu filho
A pampa pobre que herdei de meu pai

Herdei um campo onde o patrão é rei
Tendo poderes sobre o pão e as águas
Onde esquecido vive o peão sem leis
De pés descalços cabresteando mágoas

O que hoje herdo da minha grei chirua
É um desafio que a minha idade afronta
Pois me deixaram com a guaiaca nua
Pra pagar uma porção de contas

Se for preciso, eu volto a ser caudilho
Por essa pampa que ficou pra trás
Porque eu não quero deixar pro meu filho
A pampa pobre que herdei de meu pai”

Gaúcho Da Fronteira/ Vainê Darde

Antônia no Divã

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