Parte 1 – “No meio do caminho tinha uma pedra”

Parte 2- “O garoto e a pedra”

A alta do hospital veio cheia de dúvidas. Se com o seguro válido havia sido complicado autorizar a primeira e segunda cirurgia, uma terceira estava quase fora de cogitação. Informei meus amigos e meu pai que estava tudo resolvido, pois a expectativa de autorizar novos procedimentos sob a atenção de uma plateia angustiada era algo que eu não queria repetir. Expliquei para a minha mãe que tentaria encerrar minha situação médica na Austrália, mas que estaria no primeiro voo para o Brasil caso não tivesse sucesso.

Mas o caminho do sucesso era árduo e demorado.

O seguro obviamente não tinha interesse (ou obrigação) nenhuma de me atender em uma terceira cirurgia. Ainda que tivessem usado duas semanas da minha franquia tentando autorizar o primeiro procedimento. Foram necessárias longas e acaloradas discussões no telefone, e uma carta de recomendação bem argumentada do meu urologista para que depois de quatro dias de negociações, a última etapa de remoção da minha pedra fosse finalmente autorizada.

O tempo todo deste processo burocrático, eu lidava com a recuperação que incluía um cateter que me repuxava a alma a cada xixi, um corte nas costas que vazava urina em um pequeno saquinho ligado a um curativo e uma autoestima localizada abaixo da sola do meu pé. Quando a autorização finalmente veio, a minha imunidade estava tão comprometida que desenvolvi uma tosse horrenda. Em contato com o consultório do urologista, fui informada de que não poderia me operar sem curar a minha tosse. Desta forma fui colocada em observação médica por 14 dias – ou seja, eu tinha 2 semanas para melhorar.

Em consulta ao GP (general practice) – a médica do centro clínico da Gold Coast me informa outra má notícia. A minha tosse era sintoma de uma virose chamada “Influenza” que estava atacando a população local. Para piorar a médica informa que não havia nada que eu pudesse fazer para melhorar a não ser ingerir líquidos e aumentar a minha imunidade.

Naquela situação eu não sabia se chorava ou se tossia, e na dúvida eu fiz os dois.

A Influenza me derrubou de tal forma, que passei dias entre leves melhoras, e fortes quedas. Febres e dores do corpo passaram a fazer parte da minha rotina – rotina essa que já andava complicada com a recuperação da cirurgia. A peste era tanta que meu apetite desapareceu, e em algumas crises de tosse chegava a vomitar pelo nariz a pouca comida que administrava colocar para dentro. Vomitar na cama do Boy – que fique registrado, para dar o devido drama a minha situação.

A minha condição debilitada começou a afetar meu espirito, e me peguei chorando inúmeras vezes no sofá por não ter ideia de como me sentir melhor. Tomava banhos escaldantes para controlar meus calafrios, e sobre muito protesto fazia gargarejos de vinagre e sal que o Boy recomendava. Passamos a discutir por conta do meu estado de definhamento – ele queria que eu reagisse, saísse para caminhar, fizesse o meu sangue circular. Tudo que eu conseguia fazer era dormir longas horas, me arrastar em seus pijamas e sonhar com uma ponte aérea “sofá  > colo da minha mãe”.

A minha mãe ligava e me pedia para ser forte, e eu derramava lágrimas inconformadas por me sentir tão carente. Eu nunca tinha ficado doente daquela forma – e agora somava uma quarentena de dias em que eu me sentia imprestável, horrorosa e fraca. Muito fraca. A balança marcava 7kg a menos. O meu rosto celebrava olheiras profundas e uma herpes labial que tomava conta de metade do lábio inferior e uma parte enorme do queixo. Pensei muito naquelas pessoas que tem que lidar com doenças de longo prazo e me senti uma idiota por meu corpo se mostrar tão frágil, e meu espírito se quebrar tão fácil. Eu odiava sentir pena de mim mesma.

O aniversário do Boy veio em um daqueles famosos churrascos australianos ao ar livre. Evento que participei hora entre os convidados, e hora dormindo dentro do carro como uma criança pequena que precisa ser protegida do frio. Pensava comigo “como esse garoto ainda não me despachou de volta?”. E como mágica, ele aparecia por perto, me beijava a testa e dizia “nós vamos sair dessa, linda” – como se pudesse ler meus pensamentos.

Duas longas semanas adentro da Influenza, veio a data reagendada da minha cirurgia. O dinheiro do seguro? Nada.

– “Srta Antônia aqui é a fulana do hospital Pindara, a Srta tem uma cirurgia hoje de tarde e gostaríamos de saber como irá pagar?”- uma funcionária solicitava do outro lado da linha.

Boa pergunta. Estávamos há duas semanas da autorização e nada da transferência de fundos. Faço uma ligação rápida para o seguro – considerando o fuso, penso que o dinheiro poderia estar a caminho. “Deve chegar ainda hoje, Antônia” – a supervisora me “tranquiliza”. “Deve chegar”. Meu estômago dá pulos de angustia. Preparo-me para a cirurgia de qualquer forma. Ajeito a mochila. Leio as instruções. “Fazer 4 horas de jejum antes da cirurgia”. Preparo um purê de batata e me alimento com dificuldade – culpa da virose e do estresse causado pela incerteza da minha situação.

A confirmação do dinheiro chega à 1h da minha baixa no hospital. A minha tosse a esta altura já cedia um pouco, mas não estava completamente curada e eu só rezava não apresentar nenhuma febre no meu pré-operatório. A enfermeira me examina – temperatura normal. Ufa. Despeço-me do Boy com esperança no olhar – “vai acabar tudo hoje!”. “Avisa esse urologista que chega de ter livre acesso a tua vagina” – ele brinca de volta, mais tranquilo.

Última cirurgia. O anestesista aparece para confirmar alguns dados. “Antônia, confirma pra mim uma informação do teu prontuário, você está há 4h de jejum?”“sim – comi um pequeno purê de batatas há 4h”, respondo como uma boa aluna. “Então nós temos um problema” – ele anuncia preocupado – “O jejum indicado para este procedimento é de 6h, alguém te passou uma informação errada. Se fizermos tua cirurgia agora você corre o risco de vomitar e aspirar purê de batata para os seus pulmões ”.  Por Jeová – “eu nem queria ter comido”, esbravejo sozinha. Agora o maldito purê de batatas era a pedra no caminho de remover a minha pedra.

Desabo. Se Deus estava querendo me ensinar paciência, eu estava na aula dos repetentes.

O anestesista entra no bloco cirúrgico apressado para discutir a situação com Dr. Tracey. De fora do bloco – já em meu avental descartável – ouço meu urologista advogar em minha causa. Longos minutos depois o anestesista volta – “Ok, Antônia. Vamos te deixar um tempinho esperando, pois Dr. Tracey quer muito fazer tua cirurgia hoje devido a tudo que te aconteceu –  (uma luz no fim do túnel chamado Dr. Tracey! O Boy que me desculpasse, mas esse homem merecia o livre acesso a minha vagina) – o anestesista continua: “Iremos te buscar em uma hora e meia no pré-operatório, ok?”.  Concordo disfarçando as minhas lágrimas de alívio.

Horas depois sou novamente posicionada embaixo das assustadoras luzes da sala de cirurgia. Olho com gratidão para Dr. Tracey e arrisco um pedido – “Leave nothing behind, ok?” (“não deixe nada pra trás, ok?”) – ele sorri e concorda.

“Ok, Antônia, hora de contar até 5. Pense em um lugar bonito que você gostaria de estar”.

“5,4,3…”

Ouço as ondas batendo nos corais ao fundo da praia. A água tem uma mistura interessante de tons azuis e verdes. Vindo da sacada, sinto o ar fresquinho da manhã. Da cama típica indonesiana – daquelas com estrutura de madeira e tecidos leves caídos por toda volta da cama – posso enxergar as lindas curvas do corpo de um surfista na beira da praia. Levanto-me e caminho sonolenta até a entrada do bangalow. A chuva da noite passada deixara um cheiro de mato límpido que preenche os pulmões.

Gasto um tempo observando o surfista. Há alguns minutos atrás, antes de deixar o travesseiro ao meu lado, ele tentava me acordar com beijos na boca, e outros pelo corpo até as pontas dos meus pés. Pés que ele insiste em chamar de “delicinhas”. Observo de longe a nuca dele e as lindas linhas das costas que vão até a entrada da bermuda.  Ele encara o oceano fazendo uma prece por boas ondas – eu tenho certeza. Caminho até o seu encontro e o abraço por trás, sentindo a areia fofa abraçando os nossos pés. Ao nosso redor, palmeiras infinitas são a moldura de uma cena bonita. Ermitões transitam com suas conchinhas nas costas e pequenos siris caminham entre os corais trazidos pela maré alta até a areia branca. Eles são as únicas testemunhas do nosso beijo matinal, e de nosso olhar contemplativo sobre o paraíso daquela ilha deserta.

– “Acordou finalmente.” – ele me abraça apertado, e eu sinto o cheio gostoso da sua pele.

– “Parece que não” – respondo suspirando e sorrio encarando aqueles lindos olhos verdes.

– “Fica tranquila, linda, eu te garanto que isso não é um sonho.” – e então me beija a boca com gosto de sol da manhã.

.

Saudações das Ilhas Mentawais, queridos leitores. SENANG.

Fim da sessão.

ps: O nome do Boy é Leonardo. Achei importante pontuar que, como escritor, Deus adora uma ironia.

Antônia no Divã

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