Efemérides

Vai ficar tudo bem, pai.

É engraçado que quando somos crianças nós não percebemos que as nossas brincadeiras e joguinhos, instintivamente nos preparam para sobreviver à vida adulta. Brincar de casinha, nos dá pequenas noções de sermos responsáveis por um espaço, ou quando brincamos de carrinho, imaginamos como manusear um veículo com cuidado, assim como bonecas e bonecos nos fazem imaginar interações com nossos futuros filhos, maridos, esposas e assim por diante. Infelizmente nenhuma destas brincadeiras nos prepara para uma das tarefas mais difíceis da vida adulta, que é cuidar dos nossos pais. Claro, como nós íamos imaginar que em algum momento, aqueles que sempre nos cuidaram, precisariam de cuidados? Era uma conclusão ilógica do ponto de vista da hierarquia e da maturidade. Então, a vida, essa brincalhona, vem e nos surpreende.

Eu comecei cedo a cuidar dos meus pais. Em especial do meu pai. Não que ele seja um cara incapaz, sob qualquer aspecto. Meu pai é novo, ativo e inteligente. Mas por vezes na nossa jornada, ele ficou um tanto perdido, e foi na minha mão que ele segurou. Foram duas vezes, em que tive que enfrentar um tratamento de saúde ao seu lado – eu e meu irmão – já que na época os meus pais já estavam separados. Durante os meses de tratamento intensivo, o meu pai teve medo da morte – e eu, medo da vida sem ele, e essa era uma sensação insuportável no auge dos meus 20 e poucos anos. Ainda que minha mãe estivesse sempre por perto, me dando apoio, cuidar do meu pai, passou a ser uma tarefa minha, e durante algum tempo, de mais ninguém.

Do meu lado, ele passou a se preocupar com o futuro dos negócios, e viu em mim uma aliada. Além de herdeira, eu passei a ser um dos braços direitos dele na empresa – e sofrer junto com ele, mês a mês, por resultados. Passei também a me preocupar com seus relacionamentos – coisa que antes era tarefa única, exclusiva dele: “mas quem é essa fulana?”, “De quem é essa jaqueta de mulher aqui?”, “Quando tu vai apresentar essa beltrana?”, até que finalmente, tivemos a tranquilidade de uma companheira de verdade entrar na vida do meu pai. Ainda assim, entramos naquela fase em que eu passei a questionar as atitudes e decisões dele, todo e qualquer momento: “como assim não vai tirar férias, tu precisa descansar!”, “tu tá indo no psiquiatra?”, “já foi no médico ver essa pintinha estranha?”, “que remédio é esse que tu tá tomando?”, “larga esse negócio pesado, tu acha que tu tem 20 anos, e não 60?”. E confesso, não é fácil. A hierarquia fica confusa, até porque sempre foi ele que botou as minhas atitudes e decisões à prova. Aceitar que os papeis eventualmente mudassem, foi confuso, e exigiu (e exige) muita paciência, tolerância e negociação.

Mas confuso, difícil, intolerável, ganhou todo outro sentido há algum tempo, como vocês sabem. Domingo é dia dos pais, e o primeiro sem o meu irmão. Assim como o primeiro natal, aniversário, dia das mães, esse é o primeiro dia dos pais sem o Leonardo. E se tudo que é a primeira vez, desde então, ficou insuportável, o dia dos pais, é a minha prova de fogo. Talvez porque o luto do meu pai, ainda é para mim, o mais complexo. Complexo porque meu pai busca respostas, das quais a minha mãe e eu, já abrimos mão. Complexo porque para o meu pai, a nossa situação hoje tem peso de castigo.  De um “preço alto” que estamos pagando. É complexo porque nunca antes na minha vida eu quis tanto pegar meu pai no colo, e embalar seu pranto, como só as mães conseguem fazer.

E eu não consigo fazê-lo. Basta-me apenas, a difícil tarefa de acompanhá-lo em seu ritual de manutenção na lápide do meu irmão – enquanto ele cuidadosamente remove as velhas flores, e troca por botões novos, que ele ressalta constantemente, durar muito do que as flores normais. Um fornecedor novo, que ele comenta ter descoberto, falando com orgulho. Ele então lava bem o potinho das flores, e esconde as orgânicas, com flores artificiais – já que as naturais são proibidas naquele espaço. Meu pai jamais deixaria meu irmão com flores de plástico, ainda que isso agisse contra as regras do próprio céu. E eu fico lá com o coração na mão, vigiando o seu empenho e sapequice  ao quebrar o protocolo daquele local de descanso.

Entre uma tarefa e outra que ele executa com precisão cirúrgica, ele fuma um cigarro. Eu engasgo o choro para dentro, enquanto vejo-o soprar a fumacinha em direção à fenda de pedra, para o caso do meu irmão – também fumante – sentisse falta de um barato proveniente dos vícios terrenos. Fico escutando suas dores, pensando em mil maneiras de aliviá-las, admitindo e aguentando as minhas próprias limitações, de que tudo que eu posso fazer pelo meu pai, estou … ali, ficando do seu lado. Escutando e entendendo. Desmistificando pouco a pouco a ideia que ele tem de que a partida do meu irmão seja um castigo, mas muito mais uma evolução, reconhecida pela entidade mais sagrada na vida e depois dela. Pelo meu pai eu finjo ser forte, mesmo quando ser forte, seria a minha última opção.

Talvez essa seja a lição mais difícil a ser aprendida, e por isso não aprendemos a cuidar dos nossos pais desde cedo. Porque a gente precisa ter a ilusão de que eles são fortes o tempo todo, para que a gente vá descobrindo a nossa própria força. Força essa, que um dia será útil até para cuidar deles, dos nossos pais.

Nesse dia dos pais eu queria agradecer a todos os pais que fingiram força pelos seus filhos uma vida inteira, mesmo quando era a sua última opção. Fingiram força, engoliram o choro, adiaram planos, parcelaram desejos, e entregaram tudo que era seu, para que nós, seus filhos, tivéssemos todas as chances de felicidade e oportunidades de sucesso deste mundo. E o meu pai sempre foi esse cara. Com todos os seus defeitos e limitações, ele sempre esteve do meu lado cuidando de mim, fingindo que era forte para enfrentar tudo.

E eu vou fazer o mesmo por ele.  Vai ficar tudo bem, pai.


Fim da sessão.

Um abraço apertado aos pais presentes e atuantes – aqueles que são os nossos heróis tão humanos.

Antônia no Divã

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Antônia no Divã

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