Crônicas

Ah, eu sou gaúcho. 

em
22 de setembro de 2015

Essa frase já foi o ecoar do orgulho dos pampas. Não importa onde você está ou em que tipo de congregação, haverá sempre um gaúcho a proclamar seu amor pela origem, pela tradição e orgulho de pertencer à terra de Getúlio Vargas, Bento Gonçalves e Anita Garibaldi. Ser gaúcho sempre pareceu a mais importante das causas. O Hino Rio-Grandense é ensinado até hoje nas escolas, decorado com amor e proclamado a cada clássico GreNal ou evento de mesma importância. Quem morou fora muitas vezes se pegou dizendo, “sou gaúcho, do Brasil” como sendo uma estirpe superior de brasileiro. Nosso chimarrão é dito como o melhor dos mates. Nosso povo dotado como o mais garrido. Nossas revoluções ditas as mais nobres, visto que o 20 de setembro ainda brilha orgulhoso acima de todos os porongos. Nossas façanhas se dizem valer de modelo a toda Terra.

Por que hoje em dia, no entanto, muitos de nós já não nos sentimos tão orgulhosos?

Ora, a minha querência já não é mais a mesma – por favor, tranquem as porteiras. Na semana passada abriram meu carro enquanto eu dava aula. Suspirei pelo prejuízo da porta estragada e segui minha vida como boa trabalhadora que paga seus impostos. Não me abati: “acontece!” – pensei comigo. Três dias depois do furto, entraram na casa da minha mãe, onde ela, os dois pequenos e o marido dormiam no andar de cima. No andar de baixo marginais fizeram a limpa, não deixaram pra trás nem a torta de bolacha das crianças, veja que audácia. Novamente não nos abatemos – estávamos todos bem, apesar das perdas materiais. Os vizinhos ouviram tudo durante a madrugada, ninguém chamou a polícia – talvez por não se importarem mais ou por terem a certeza de que ninguém viria ao nosso socorro. No terceiro episódio em uma semana, ontem abordaram meu pai, esposa, irmão e primo na saída do hospital. Não havia viaturas para enviar, não havia pra quem ligar. Ao arrancar os assaltantes rugiram ofensas como “Toma burguesia! Perdeu playboy!” acelerando o carro financiado rua afora. Meu irmão passa mal e convulsiona. A incerteza faz mal pra cabeça e parte o peito ao meio.

Dou-me conta que o lenço no pescoço já não identifica mais ninguém nas planícies ou serra deste estado – maragato; chimango; trabalhador; assaltante. Uma guerra sem rostos, sem propósito, sem autoridade. Nossa terra deixou de ser o berço de revolucionários, para tornar-se uma terra de ninguém.

Destranco o meu caminho com as sete chaves que uso entre a porta e o carro. Corro em direção a família assustada, como fiz na semana passada. No percurso choro não sei por que ou por quem. Se pela insegurança vivida nesta terra que já foi tão querida. Se pelos salários parcelados, ou pelas escolas fechadas, pelos trabalhadores que protestam em greve. Que liberdade é essa que comemoramos anualmente, em piquetes cada vez mais trancados com correntes e cadeados? Choro pelo sangue de farrapo espalhado pelas ruas. Penso em perguntar de forma bem sincera ao Senhor Governador, gringo da serra gaúcha como eu, o que é preciso fazer para que a segurança volte às ruas? Como reconstruir essa unidade federativa que já foi tão produtiva e agora é dada como quebrada? Flávio Dino disse no mesmo mês dos festejos de orgulho farroupilha, “Devo zelar para que o Maranhão não se transforme no RS”. Ora, será que já não somos mais “uma estrela brilhante na bandeira do Brasil”?

Fiquei pensando o que Nico Fagundes, poeta e tradicionalista, não está pensando lá de cima, sobre esta terra que ele amou desde guri. Talvez seja por isso que chove intensamente durante todo o mês no estado. Setembro foi inundado pelo choro do tio Nico e de tantos gaúchos aqui embaixo querendo poder gritar, de novo e mais uma vez com orgulho no lugar de lágrimas, “ah, eu sou gaúcho”. “Ah, eu sou gaúcho.”


Fim da sessão.

“Passam às mãos da minha geração.
Heranças feitas de fortunas rotas
Campos desertos que não geram pão
Onde a ganância anda de rédeas soltas

Se for preciso, eu volto a ser caudilho
Por essa pampa que ficou pra trás
Porque eu não quero deixar pro meu filho
A pampa pobre que herdei de meu pai

Herdei um campo onde o patrão é rei
Tendo poderes sobre o pão e as águas
Onde esquecido vive o peão sem leis
De pés descalços cabresteando mágoas

O que hoje herdo da minha grei chirua
É um desafio que a minha idade afronta
Pois me deixaram com a guaiaca nua
Pra pagar uma porção de contas

Se for preciso, eu volto a ser caudilho
Por essa pampa que ficou pra trás
Porque eu não quero deixar pro meu filho
A pampa pobre que herdei de meu pai”

Gaúcho Da Fronteira/ Vainê Darde

Palavras-Chave
SESSÕES RELACIONADAS
11 Comments
  1. Responder

    Luis Fernando Gigena

    11 de novembro de 2015

    Oi Antônia. Anita Garibaldi era Catarina de Laguna. Parabéns pelos lindos textos.

  2. Responder

    mari

    24 de setembro de 2015

    Não está tão diferente aqui no Rio, Antônia ??

    • Responder

      Antônia no Divã

      29 de setembro de 2015

      Que triste, Mari. Eu vi os arrastões. Que medo, viu?! Fica bem! bjos

  3. Responder

    Mirna Nunes

    24 de setembro de 2015

    Realmente Antonia, com o coração apertado, fico revoltada e envergonhada por viver ainda, nesse país que eu amo tanto ! Penso eu que tudo tem jeito nessa vida, e que está faltando atitude dos nossos governantes, que estão, alem de tudo, omissos! Nossas leis são frágeis e não cumpridas ! Quando temos garra e vontade conseguimos mudar o mundo ! Bjos

    • Responder

      Antônia no Divã

      29 de setembro de 2015

      Ai Mirna, desistir é que não dá, né? Como dizem aqui no Sul, “não tá morto quem peleia!”. beijocas

  4. Responder

    Dulce

    22 de setembro de 2015

    ❤ beijos. Sua indignação e perplexidade é a mesma de todos os brasileiros

    • Responder

      Antônia no Divã

      29 de setembro de 2015

      Pois é Dulce, estamos juntos nessa!

  5. Responder

    Evandro

    22 de setembro de 2015

    Todo carinho pra você, linda.
    Infelizmente, cada blogueiro que se situa em cidades diferentes em nosso país, anda retratando o mesmo desconforto que as terras gaúchas andam trilhando.
    É uma passagem onde o cidadão brasileiro tem sua vida marcada como sendo um desnível dos grandes nas quedas da bolsa.
    Aqueles que realmente desejam que este gráfico volte a crescer, realmente fazem algo a seu favor, empurrando esses pontos para cima.
    Altos e baixos, sempre vão ocorrer, mas da forma que está acontecendo e muitos ainda dizem que esse “estado de sítio” é “política pura”.
    Os valores regionais, já ficaram ao vento, os tradicionais já se foram, os valores humanos não estão sendo mais respeitados.
    Todos nós desejamos ter uma resposta para nos dizer o que podemos fazer para melhorar nosso país.
    Alguém se habilita em dar essa resposta, sem xingamentos?
    Realmente, dá vontade de pegar o primeiro voo internacional e “… ir embora”.
    Beijo.

    • Responder

      Antônia no Divã

      29 de setembro de 2015

      Oi meu querido! Tá feia a peleia, né? Mas não tá morto quem tá nela. E enquanto não botamos o pé no mundo de novo – mundo esse que também tá virado de pernas pro ar – vamos tentando fazer o melhor com a parte que nos cabe; não é? Fé é uma coisa engraçada. A gente não decide quando vai por fim dela não… Beijoconas

  6. Responder

    Rosa Lucia c Meyer

    22 de setembro de 2015

    Antônia querida! Eu não sabia que tu tb eras gaúcha. Fique com um sentimento assim: essa guria botou em palavras de forma sensível e brilhante os nossos pensamento e pesar. Mas como vc ainda digo: ah! Eu sou gaúcha!

    • Responder

      Antônia no Divã

      29 de setembro de 2015

      Ah, eu sou gaúcha, Rosa. Gringa de Caxias do Sul, do vinho e da polenta, mas criada na região do Vale do Sinos – muito embora eu me considere uma cidadã do mundo! 😉 beijos, tchê!

DEIXE UM COMENTÁRIO

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Aline Mazzocchi
No divã e pelo mundo

De batismo, sim, Aline. Mas eu precisei do codinome Antônia - do latim "de valor inestimável" - para dividir minhas sessões públicas de escrita-terapia. O que divido aqui é o melhor e o pior de mim, tudo que aprendi no divã e botando o pé na estrada. Não para que dizer como você deve ver a vida. Mas para que essa eterna busca pelo auto-conhecimento, não seja uma jornada solitária, ainda que pessoal e intransferível. Então fique a vontade pra dividir o divã e algumas boas histórias comigo. contato@antonianodiva.com.br

PESQUISE AQUI