Efemérides

Ressignificar

em
17 de julho de 2018

Eu moro na praia. Um lugar tranquilo. Toda vez que eu abro a janela, eu posso ouvir o mar. As ondas quebrando. Você não imagina o quanto o som é relaxante. Isso claro, até o momento em que a Vera acorda. A Vera é a vizinha do lado, cujo único prazer, ao que me parece, é perturbar o neto de 7 anos. Falo perturbar porque a Vera chama o menino o tempo todo. Se ele está brincando, e ela dá um prazo para ele entrar, digamos, meia hora, a Vera fica da janela do quarto dando avisos de 5 em 5 minutos. “Faltam 25 minutos, fulano!”, “Faltam 20 minutos, fulano”.

Vejo dois grandes problemas no talento da Vera infernizar o menino: 1) eu trabalho de casa, e acompanho a rotina de chama-chama todos os dias. 2) o nome do menino é o mesmo do meu ex namorado, aquele cuja memória nunca é boa.

Aff. Os primeiros meses foram foda, eu confesso. Eu jurei a Vera de morte muitas vezes. Fiquei torcendo que o menino aprendesse um palavrão novo, ou fosse desaforado com a velha. Olhe, eu sou uma boa pessoa, mas eu também tenho meus dias que nem velhinhas, por mais brancos que sejam seus cabelos, ganham minha empatia. E a Vera consegue ser aquela que me tira do sério.

Acontece que com o passar do tempo, o nome do meu ex passou a ser ressignificado pelos gritos da Vera chamando o menino. Agora cada vez que escuto “fulano”, eu não lembro mais do meu coração partido e das vergonhas as quais me submeti no passado. Não. Agora onde quer que eu vá, e eu escute aquele nome tão conhecido, me lembro do menino, que pede pra ficar mais 5 minutinhos jogando futebol na rua, cada vez que a vó termina a contagem dos 30 minutos (de 5 em 5).

Você percebe a beleza disso?

Ressignificação é uma palavra bonita. Ainda que perturbadora. Porque ressignificar não acontece de uma hora pra outra, mas quando vê, pá-pum. Rola uma ressignificada na cara do vivente. Não manda aviso, não dá pinta. Quando você viu, algo que era muito importante, ou de tal forma, “do nada”, virou outra. Talvez porque a gente seja natureza viva e em eterna transformação, por mais que nossas teimosias imperem. É um paradoxo, na verdade. Porque ressignificar tem algo de trivial e ao mesmo tempo grandioso, tudo ao mesmo tempo. Sendo o “tempo”, a grande palavra chave deste processo.

Um dia contava ao meu pai de uma briga com meu atual namorado, e de como a gente estava tentando superar um desafio (daqueles normais, de casais que estão aprendendo a conviver), e meu pai se pegou muito preocupado. “Mas minha filha, e se vocês acabarem? E se você ficar triste? Não podemos ter perdido o teu irmão, e ainda você levar um pé na bunda.” Eu dei uma risadinha interna vendo o meu pai se preocupar comigo, como um dia fizera lá trás, nos meus primeiros romances. Mas eu sabia que não era a minha experiência amorosa que estava preocupando o meu pai. É que frente à ausência do meu irmão, a minha felicidade tornou-se a coisa mais urgente da vida do meu pai.

Outra ressignificação importante neste mesmo contexto foi a minha. Frente a uma despedida tão definitiva quanto a do meu irmão, superar um pé na bunda e um novo coração partido já não me parecem mais um desafio tão assustador. Claro que eu tenho medo de viver outras tristezas, mas depois que você já se agarrou a ela, já conheceu a tristeza bem de perto, passou por um lutou, lutou, voltou pra luz, você entende que é mais forte do que esperava. Então não se assusta com a perspectiva de outras separações menos definitivas.

Isso é outra coisa que a morte faz. Te ajuda a ressignificar o que são de fato problemas. E o que importa na vida.

E essa é a beleza da ressignificação. Dificilmente ela passa desapercebida, e raras são as vezes que ela vem de forma negativa. Ressignificar é pegar a merda que a vida te deu, e adubar novos planos. E é a resiliência repaginada, com brilho novo. É você dizendo “oh vida, nem vem me derrubar não, que eu sou bem louca, e me levanto de novo mesmo, viu?”. Talvez a gente não perceba a ressignificação operando, e por isso ela seja tão eficaz. Porque como a gente não a percebe, a gente também não a impede de acontecer.

Quando vê, algo que era velho, ficou novo. Era ruim, ficou bom. Era difícil, mas facilitou o que viria depois. É a nossa visão de mundo em movimento. O grande barato é perceber quando aconteceu. E abraçar por completo a ressiginificação.

CAUÊEEEEEEEEEEEEEEEEEE, A TUA VÓ JÁ MANDOU TU ENTRAR!!!!

Fim da sessão.

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3 Comments
  1. Responder

    Rosângela

    14 de agosto de 2018

    És fantástica!

  2. Responder

    Michele

    18 de julho de 2018

    Aline, simplesmente um dos melhores textos teus que li! Com final surpreendente kkkkk! Beijao

  3. Responder

    Adriana Zanella

    17 de julho de 2018

    Perfeito!!!!! Vc arrebenta 👊🏻❤️

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Aline Mazzocchi
No divã e pelo mundo

De batismo, sim, Aline. Mas eu precisei do codinome Antônia - do latim "de valor inestimável" - para dividir minhas sessões públicas de escrita-terapia. O que divido aqui é o melhor e o pior de mim, tudo que aprendi no divã e botando o pé na estrada. Não para que dizer como você deve ver a vida. Mas para que essa eterna busca pelo auto-conhecimento, não seja uma jornada solitária, ainda que pessoal e intransferível. Então fique a vontade pra dividir o divã e algumas boas histórias comigo. contato@antonianodiva.com.br

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