Crônicas

É preciso lutar

em
19 de dezembro de 2015

O dia 18 de dezembro de 2015 foi esperado e planejado pela minha família durante seis anos. Para a data estava agendada uma grande festa, em celebração a maior das conquistas, a formatura de medicina do Léo, irmão e filho querido, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Veja que tudo mudou há dois meses. Após um mal súbito, aos 26 anos, nosso garoto de ouro veio a falecer. E quando digo garoto de ouro me refiro ao seu bom coração, seu altruísmo, e dedicação com tudo que fez em seu tempo aqui neste plano.

Após a partida do Léo, reunimos as poucas forças que nos restavam para atender um único pedido. Queríamos o canudo dele. E pedimos a PUCRS que ele fosse entregue a família na formatura. Passaram-se então 60 dias excruciantes num jogo de empurra-empurra de responsabilidade. Hora  a definição era responsabilidade da direção da faculdade de medicina, hora era do jurídico, hora da comissão de formatura. Foram-nos apresentados todos os empecilhos, nos solicitaram apresentação de documentos adicionais, foram levantadas algumas dificuldades com a turma, tudo sendo resolvido pela família e advogados a cada passo numa espécie de gincana agonizante contra o tempo. Dia 17, a 30 horas da formatura, nosso pedido foi formalmente negado. A justificativa? O Léo não teria concluído as duas últimas cadeiras do curso. Ele não tinha presença nelas. Simplesmente porque faleceu. Ele rodou por faltas porque partiu para o céu. Ficamos arrasados. Por nós, e pelo meu irmão.

E aqui entendam, que o meu irmão não era qualquer aluno. Não que lhe coubesse qualquer privilégio, para nós a entrega era um direito e um tremendo bom senso. O Leonardo foi presidente do diretório acadêmico Garcia Prado, quando lutou ativamente pela redução do aumento das mensalidades, pois acreditava que o curso de medicina deveria ser acessível e não impossível aos menos privilegiados, alem de batalhar por inúmeras melhorias dentro da universidade que escolheu. Foi conselheiro do DU-AMGRIS. Fez estágio no renomado Jackson Memorial Hospital da University Miller of Miami. Reuniu mais de seis mil horas de atividades complementares como participante e organizador. Escreveu artigos para revistas de medicina nacionais e internacionais. Foi contemplado com uma bolsa de MD-PhD antes mesmo da formatura. Seria Dr. com PhD em neurociência. Colega querido de todas as ATMs. Aluno respeitado por toda a Famed. Teve uma passagem irretocável de seis anos na PUCRS. Sua ausência nos últimos dias de faculdade não foi opcional.  O canudo já era dele. Bastava a PUCRS entregar-nos.

Evidente que dentro da legislação e regimento interno a PUCRS não feria a nenhuma lei ou norma. Estava completamente respaldada por seu estatuto. Ainda entendendo sua posição, precisávamos lutar até o final pela humanização do nosso pedido. Acreditávamos que a entrega do canudo era uma forma simbólica de reconhecer os feitos do Leonardo e mais uma vez pedimos a universidade reconsiderasse. Faltando pouco mais de 24h para a solenidade, recorremos às redes sociais pedindo apoio. Em um país que clama por educação, um aluno deste calibre não receber o reconhecimento de uma faculdade católica, na área de ciências humanas, no curso de medicina que é forjado pela empatia, nos parecia desumano e contraditório. Para nós e para a comunidade com quem o Léo se envolvia. A comoção na internet através da hashtag #PUCRSentregueOcanudo foi a prova disso. Foram milhares de compartilhamentos por todo Brasil, chamando a atenção da mídia e também da própria faculdade. O perfil de Facebook do Léo acabou sendo desativado pelo próprio site, quando recebeu tanta atenção (e dada a sua condição atual). O evento virtual de apoio na mesma rede social, reuniu mais de cinco mil participantes em poucas horas. Evento que foi cancelado prontamente quando soubemos que a turma e também a PUCRS temiam uma presença física massiva em protesto na solenidade. Cancelamos o evento no Facebook (onde estava claro tratar-se de um apoio puramente virtual) em respeito aos formados da turma do Léo e suas famílias – não queríamos que temessem que a alegria de sua formatura fosse comprometida de alguma forma. Eles sentiram em poucas horas de aflição, o que sentimos durante 60 dias, e nunca desejávamos isso a eles. Ou a nós.

Na cerimônia estávamos todos lá, vestindo o jaleco branco do Léo através de camisetas personalizadas. Explicamos ao Murilo e ao Mateus, meus irmãos e do Léo que tem apenas cinco aninhos, que muito embora tivessem treinado em casa a retirada do canudo do mano com o controle remoto, não haveria o esperado momento. Para minimizar nossa frustração, levamos nossos próprios canudos, em forma de nosso respeito ao futuro doutor. Após a homenagem dos alunos da turma através de vídeo e menção em discurso – discurso que o Léo faria se estivesse aqui – levantamos nossos canudos e dissemos ao alto “Léo este canudo é teu”. Queríamos que ele soubesse que embora a universidade nos tivesse negado a entrega de qualquer coisa, onde ele estivesse, teria a certeza de que o canudo era e sempre foi dele.

Mas nem tudo estava perdido. Algo aconteceu, que só acontece nas boas histórias. Uma reviravolta. Representando a PUCRS, o Sr. Dr. Jefferson Braga, mestre de cerimônia da solenidade anunciou com voz engasgada e feições de alta emoção, que sua posição superior na mesa de formatura lhe garantia algumas vantagens. Quebrando o protocolo da cerimônia, chamou a família do Léo para entregar-lhes não um canudo, mas um abraço. A musica do Léo foi tocada, e lá junto aos seus colegas, a família do Dr. Leonardo Mazzocchi sentiu sua presença mais forte. Lagrimas e aplausos em pé calaram a nossa dor por alguns minutos, e de alguma forma, estávamos em paz. Em meio a tanta emoção, alguém não esqueceu o nosso objetivo principal. Chorando muito no colo da mana, o Murilo, com toda a sua sabedoria e sensibilidade de quem é fã do irmão, levantou o canudo improvisado sacudindo-o ao alto. Nossa missão estava cumprida. Além disso duas amigas e doutoras recém formadas ao final da solenidade  nos entregaram seus próprios canudos em reconhecimento ao Léo, um que ficou com a minha mãe  e outro que foi entregue ao meu pai.

Sim, foi difícil e dolorido. Mas que mudança não é? E se não couber a nós, cidadãos, modelar as instituições para que se tornem cada vez mais humanas e honrosas, quem o fará? Desprestigiar a PUCRS nunca foi nosso objetivo. Como faríamos se foi esta a faculdade que o Leonardo escolheu e para a qual tanto se dedicou? Não, nós pedimos que nos escutassem. Clamamos em coro por uma mudança de atitude. E ela nos ouviu. Gosto de pensar que aprendeu conosco. E por isso abraçou-nos. Abraçou ao Léo. Penso que o Sr. Dr. Jefferson Braga, representando a PUCRS, entendeu ali que o protocolo podia ser quebrado, para que nossa fé na faculdade não fosse. Fé no seu lado mais humano. Provou que a Famed da PUCRS pode sim aplicar  a empatia que ensina. A turma, na sua maioria, demonstrou seu altruísmo nos cedendo espaço, o que não é surpresa, justo que formam um grupo que tinha a mais alta estima do colega que partiu. A #PUCRSentregouOabraço!

Aprendemos juntos que por amor vale a pena lutar. Levantar bandeiras. Criar campanha. Hashtags. Quebrar protocolos. Que histórias assim fortaleçam nossa crença que podemos modificar as instituições e acima de tudo, nossa própria humanidade. Nossa causa foi abraçada por muitos. E essa luta nos fez mais fortes. O amor prevaleceu. E quando digo prevaleceu e não “venceu”, é porque tudo isso não se tratava de uma disputa. Prevaleceu porque amor, empatia, humanidade, não são exigidos a ninguém. Ou existem ou não existem nas pessoas. E que estes sentimentos sigam nos movimentando, modificando, sabendo que eles não encerram quando a vida acaba. Amor, dedicação, sacrifícios, transcendem nosso tempo aqui neste plano. E que todo aquele que lutou por um sonho possa ter o seu nome lembrado e reconhecido, sempre que for preciso. Ao fim da cerimônia, um casal aproximou-se de nós pedindo também um abraço. Eram pais de um filho único que havia falecido na tragédia da Boate Kiss, de Santa Maria. Disseram-nos que coincidência nenhuma havia nos colocado tão próximos naquela plateia, que aquilo fora arquitetado por dois jovens lá em cima, operando pela nossa dor comum. A mãe do jovem, agradeceu a minha mãe por ter participado do nosso momento lindo na formatura, um ato de amor que fez tanto sentido para ela, tanto quanto fez para nós.

Alguns questionaram nossas razões, acusaram nossos egos, falaram que aquele era tão somente um pedaço de papel, apenas um canudo vazio. Ora para nós, ele era cheio de propósito e alegria. Representava o espírito do meu irmão, que nunca desistiu frente a uma dificuldade, que nunca se paralisou frente a uma injustiça, e que sempre se dedicou com seus amores. Aprendi por fim que a minha família NUNCA VAI DESISTIR. Da vida, da memória do meu irmão, de nós mesmos, de ter fé. Este Natal será marcado por encerramentos, como a formatura, e também pelo nascimento de novos ciclos. Novos sentimentos. Como família. Como amigos. Como seres de amor.  A renovação da nossa força. E força, meus caros, se aprende a ter, lutando. Então é preciso sim lutar. Não por vencer ou perder, mas simplesmente pela necessidade humana de sonhar e acreditar que podemos mover montanhas.

Na volta da solenidade perguntei ao Murilo se ele tinha chorado ao levantar o canudo do mano por estar nervoso ou emocionado. Sorrindo, o pequeno disse-me prontamente:

“Não mana, chorei porque estava feliz”.

Lutar vale a pena.


Fim da sessão.

E se palavras não transcrevem a emoção – cá está o vídeo*:

https://www.facebook.com/difoccus/videos/vb.153980091324400/895687713820297/?type=2&theater¬if_t=video_reply

*vídeo = precisa estar logado no Facebook.

AGRADECIMENTO FORMAIS E NECESSÁRIOS

Primeiramente a universidade PUCRS e ao Dr. Jefferson Braga, por atender ao nosso pedido massivo de reconhecimento através da família do Léo. Aos Drs. Carlos Eduardo e Loredana Magalhães e família, nossos amigos e parte escolhida da nossa família, por nos aconselharam judicialmente e espiritualmente durante todo este processo. Aos veículos de comunicação por terem nos procurado demonstrando interesse na causa e por tratarem dela com delicadeza, atendendo aos nossos pedidos de jamais denegrir de qualquer forma a instituição PUCRS. A turma ATM 2015 que nos ajudou, aturou muitas vezes, compreendeu e apoiou o nosso pedido – em especial as colegas e agora Dras. Tatzie e Valentina.  A Nanda, Luisa, Nessa, Nathália e Andressa por serem maravilhosas amigas do Léo e agora se tornarem nossas. As minhas amigas, que também são amigas do Léo, por todo reboliço, numa mistura de revolta e amor, causado por seus grandes corações – Doka, Bia, Irlene, Jéssica. Aos amigos e família da minha mãe pelo suporte a ela – Nhaiobi, Duda, Déia, Elaine, Nilton, Jane. As minhas amigas e amigos que me abraçam na boa, na ruim e na difícil, Luana, Amanda, Pri, Pedro, Ana Cristina, Bárbara e tantos outros. A todos os leitores do Antônia no Divã, que sempre me enchem de amor, e ontem tomaram partido na minha luta pessoal. Muito obrigada por todo amor que recebo aqui. Ao DCE da PUCRS e ao Espartano Udep, todo o meu respeito. Meu agradecimento a todas as manifestações de carinho e encorajamento, através de compartilhamentos, emails, whatsapps e abraços – nos adoramos abraços. Ao meu pai por sempre me proteger e aconselhar. A minha mãe por ser a maior guerreira que já conheci, e por ter criado filhos idealistas e gentis. Ao Mateus por dizer que “o nosso show” (pra ele tudo que tem um palco é um show) pro mano Léo estava maravilhoso. Ao Murilo por tão lindamente levantar aquele canudo.

E ao Léo. Por promover sempre o melhor de todos nós. Por ser um exemplo. Somente hoje entendi que tua partida, que nos transformou tanto, não muda algumas coisas. Seguimos querendo sempre tudo de melhor pra ti. Seguimos cuidando de uns aos outros. Seguimos tentando ser bons e justos. Seguimos celebrando tuas, muito nossas, conquistas e glórias. Pessoalmente como tua irmã, a minha atitude, em nada mudou. Continuo te entregando tudo de mim, não pelo reconhecimento, mas porque não saberia fazer diferente.  Ontem sei que tu estavas sorrindo pra muita coisa, e dando risada de outras tantas. Parabéns pela formatura, Sr. Dr. Leonardo Mazzocchi – PhD na vida e depois dela.

Palavras-Chave

15 de dezembro de 2015

22 de dezembro de 2015

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12 Comments
  1. Responder

    Diemile Savani

    6 de janeiro de 2016

    Durante o Ano de 2015 pude conhecer o seu blog, que segui sempre, a cada texto publicado!! Você magicamente escreve tudo o que eu também ja passei, ou estou passando.
    Lembro do dia que você colocou a foto de LUTO na Facebook, Lembro o quanto chorei ao saber do motivo de tal, de quanto chorei em todos os textos sobre como é preciso deixar ir embora, E esse que diz o quão importante é preciso lutar. Minhas leituras aqui, São acompanhadas por lágrimas, que nem sempre são de felicidade, Mas que também trazem alívio, além do mais, é bom lavar a Alma de vez enquando!!
    Eu acredito muito no destino, e por mais que ele pareça injusto – as vezes-, no fim as coisas se endireitam…

    • Responder

      Antônia no Divã

      18 de janeiro de 2016

      Diemile, muito obrigada por teu carinho neste depoimento tão sincero. Seguimos juntas aqui e aí, espero que o destino saiba mesmo o que faz. Obrigada mesmo por tua mensagem. Beijos

  2. Responder

    Adriely

    22 de dezembro de 2015

    Linda Antônia, muito amor e luz para você e sua família. Sou de Rondônia, e acompanhei toda a história pela internet, impossível não se emocionar. Parabéns ao Léo, pela vida e memória com excelência, e pela família forte e amorosa que nos preencheu de esperança. Obrigada e obrigada! Um forte e carinhoso abraço.

  3. Responder

    Edlaine Matos

    22 de dezembro de 2015

    rsrs um pouco atrasada, mas chorando litros com a historia!

    Antônia, admiro seu AMOR INCONDICIONAL pela sua família e a forma como você o expressa. Sim o amor tem o poder de mudar, basta acreditamos!!

  4. Responder

    Ana Teté

    21 de dezembro de 2015

    O amor é tudo o que precisamos, nós damos a você, porque você nos dá “aos montes” e este tipo de amor, vai sempre prevalecer! <3 =*

  5. Responder

    Dulce

    20 de dezembro de 2015

    Carinho, Paz, Luz para você e sua família! Parabéns ao Dr. Leonardo pelo canudo e por pertencer a uma família tão bonita! Parabéns a todos que acreditaram e lutaram. Emocionada, Antônia, mas feliz por você, por todos. Que possamos aprender a ter atitudes assim. No final, o Amor venceu!

  6. Responder

    Evandro

    20 de dezembro de 2015

    Carinho. Amor. Isso tudo foi amplamente demonstrado. Adoro todo seu trabalho. Grande abraço.

  7. Responder

    Mirna Nunes

    20 de dezembro de 2015

    Parabéns ao Léo ? e à essa família maravilhosa ! Estou muito emocionada por tudo que li e vi ! Bjos no coração de todos vocês!

  8. Responder

    Nice Lazarotto

    20 de dezembro de 2015

    Antônia que Deus abençoe vcs imensamente evos de muita força para prosseguir. E parabéns ao Dr.Leonardo,que conseguiu realizar seu sonho,mesmo desta forma tão trágica!!Recebam meu carinho!! bjs

  9. Responder

    Shirlei dos Santos.

    20 de dezembro de 2015

    Lindo ,lindo…bom seria se todos tivessem tanto carinho e amor assim uns pelos outros em todas as famílias e a sua tem lindamente, fecha-se um ciclo e inicia-se outros de amor,luz…

  10. Responder

    Veruska

    19 de dezembro de 2015

    Estou emocionada demais para escrever tudo o que sinto no peito neste momento. Mas quero pelo menos mandar um abraço bem forte para todos os membros da família do Leo. Antonia, ler você é aprender lições de vida que ficam gravadas pra sempre na memória. Obrigada por você ser a Antonia!

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Aline Mazzocchi
No divã e pelo mundo

De batismo, sim, Aline. Mas eu precisei do codinome Antônia - do latim "de valor inestimável" - para dividir minhas sessões públicas de escrita-terapia. O que divido aqui é o melhor e o pior de mim, tudo que aprendi no divã e botando o pé na estrada. Não para que dizer como você deve ver a vida. Mas para que essa eterna busca pelo auto-conhecimento, não seja uma jornada solitária, ainda que pessoal e intransferível. Então fique a vontade pra dividir o divã e algumas boas histórias comigo. contato@antonianodiva.com.br

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