Carimbo Suspiros

No meio do caminho tinha uma pedra

em
6 de agosto de 2017

Quando ele ligou nos primeiros dias deste verão não entendi o contato. Era um amigo de longa data, que há tempos havia se mudado para a Austrália e estava passando o verão em Florianópolis. Não entendi a ligação pelo simples fato de que, dentre tantas pessoas que ele poderia sentir saudade, a nossa falta de contato nos últimos 6 anos me indicava que eu não era uma delas. Mas respondi com meu ar de boa praça de sempre. “Oi (espanto), sim, quanto tempo! É, nos encontramos? Claro, hoje? Ok, hmmm, sim, te busco, forró? Pode ser. Combinado, nos vemos.”

Naquela noite abafada de segunda-feira, me encaminhei para o que parecia ser um programa de índio. Forró na Praia da Joaquina pra encontrar com um cara com quem eu não falava há anos. Mas o meu ceticismo sempre teve tendências monstruosas a levar uns tapas na cara do destino, então lá foi eu.

Fui recebida com lindos olhos brilhantes, um abraço apertado e uma alegria sincera de reencontro. No forró, entre uma cerveja e outra, meu amigo admitiu que me acompanhava de longe, lia minhas intervenções online, e nutria uma enorme admiração. Eu tagarelava sem parar timidez adentro, falando sobre a sorte de ele viver num país organizado e de como a pequena cidade do interior, cenário do nosso passado, não havia mudado nada. Fiquei com as bochechas vermelhas ao reparar como os anos o haviam deixado atraente, e sorria sem graça todas as vezes que ele repetia como era bom me encontrar. Horas depois de atualizarmos nossas histórias sobre a última meia década, o dinheiro da cerveja acaba. Era hora de ir embora.

No caminho de volta, erro a velocidade num quebra-molas, e por reflexo – como as mães fazem com quem senta no banco do carona – coloco a mão no peito dele para evitar que a inércia o jogasse pra frente. No mesmo instante ele segura a minha mão em seu peito. Aperta-a contra ele mesmo.  Olho para o lado e encontro aquele belo par de olhos sorrido, enquanto segura carinhosamente a minha mão. Depois disso, deste pequeno e simbólico encontro de mãos – correram-se 20 dias de um amor de verão e uma dolorida despedida no aeroporto.

– Vem me visitar na Austrália – encorajou ele.

– Vou mesmo – eu disse com a convicção de quem não precisa muito para fazer as malas e pegar a estrada.

Meses se passaram e veio a data da esperada viagem. Com o coração cheio de dúvidas encarei as 36h cruzando o globo. Uma viagem adicional de duas semanas com as amigas em Bali foi o que precisei para poder dizer para mim mesma que não estava atravessando o mundo APENAS por causa de um caralho (por melhor que o caralho fosse). Bali veio e foi um sonho vivido do lado das pessoas que eu já sabia que amava. E então, sem muita demora, eu peguei o caminho da Austrália para encarar a aventura de ficar na casa do Boy (vamos chama-lo assim). Sim, aventura porque nada mais extremo que viver um amor de verão num minuto e no outro ir “morar” na casa do cara – ainda que por algum tempo.

A primeira semana passou como mágica, regada pela alegria do reencontro, horas infinitas de sexo de saudade e o conhecimento da rotina dele. Esforcei-me para parecer bem organizada, bem composta, e supeeeer confortável em dividir a cama. Teve a primeira festa com os amigos dele, a primeira briga, a primeira menção sobre uma possível conversa sobre um possível futuro. O Boy me convidou para estender a minha viagem a Mentawais, outra parte remota da Indonésia formada por ilhas praticamente desertas. Era como um sonho se realizando. Eu, um surfista e uma ilha deserta. Não foi difícil começar a estudar a possibilidade.

O segundo final de semana veio com uma gripe. A dele passou com a chegada da segunda-feira. A minha piorou com a necessidade de uma ida ao hospital. Meu estado tinha cara de problema. Uma pedra no caminho da minha viagem. Mas em toda a minha imaginação, eu só não imaginava o tamanho da pedra.

Na emergência do hospital indicado pelo meu seguro, o diagnóstico. Estava sofrendo de uma infecção urinária medonha. As dores lombares alertaram o médico que me atendia para a necessidade de um CT Scan. O resultado do exame confirmava a pedra no caminho: A parte interna do meu rim esquerdo, tinha sido tomada completamente por um cálculo renal imenso. Uma pedra monstruosa. Um aerólito. Assusto-me por um minuto, mas percebo que o Boy parece mais assustado que eu, então tento manter a compostura até a chegada do especialista.

Da boca do urologista, em um inglês australiano tranquilo, ouvi aquilo que ninguém quer escutar a 13mil quilômetros de distância de casa (e com o dólar 3 vezes o valor dos meus míseros reais). Eu precisava de uma cirurgia. Urgente, já que meu rim estava sofrendo. Dei baixa no hospital para lidar com a minha infecção urinária e mandei o Boy pra casa para lidar sozinha com toda a onda de pavor que tomava conta de mim.  Lembrei-me da pedra no rim que havia removido 12 anos atrás e das cólicas renais memoráveis. Aquela que eu haveria de encarar, tinha nada menos que a mesma proporção do dólar – 3x maior.

No dia seguinte de volta a casa, iniciei o processo de autorização da minha cirurgia pelo meu seguro de viagens. Intermináveis ligações durante dias, uma pá de documentos e exames, e o maior número de e-mails que já mandei na vida, justificavam a necessidade da cirurgia. A autorização veio, para o nosso alívio (meu e do Boy que pipocava angustiado ao meu lado durante as negociações). O grande problema estava na transferência de fundos. E  fica aqui o meu primeiro grande aprendizado desta história – a transição internacional de dinheiro nunca é simples.

O meu caso, por exemplo: o hospital não aceitava o cartão de crédito do meu seguro, então para que eu fizesse a cirurgia, o seguro deveria transferir dinheiro para o hospital. Até aí sem problemas. Acontece que para realizar uma transição internacional, o seguro precisava de uma nota fiscal com os valores da cirurgia, e o hospital só emitiria a nota fiscal após a cirurgia, mas também só realizaria a cirurgia depois que o seguro transferisse o dinheiro. Entendeu? Meu rim entrou num loop burocrático infinito. A esta altura, já somávamos duas semanas de negociações e nada da minha cirurgia.

Mas aqui cabe outro grande aprendizado desta história – quando você mais precisa, você pode encontrar um amigo em um estranho. Ao acompanhar a minha trama, Dr. Tracey, meu urologista, ficou compadecido de certa forma com a minha história. Pela minha viagem interrompida pela pedra. Pelo tamanho da pedra. E pelo drama com o financiamento da minha cirurgia. Foi quando sugeri ao seguro pedir ao Dr. Tracey – em uma última tentativa  – que ele emitisse a nota com o valor do hospital, recebesse o dinheiro do seguro, e assim pagasse as custas do hospital. E foi na bondade de um estranho, que consegui organizar minha ida para o centro cirúrgico.

Neste dia, pela primeira vez, vi o belo par de olhos do meu lado, chorar de alívio e alegria.

Dia da operação, e eu estava animada. Depois de 15 dias de espera e angustia, estava pronta para entrar na faca e liberar meu pobre rim das pedradas desta vida. Pesquisei meu procedimento no YouTube. Pareceu-me não ter mistério – os caras iam furar as minhas costas até o meu rim, e de lá começariam a remover meu aerólito. “De boua” – pensei. O restante do que ficasse faltando, seria removido pelo canal da uretra – ou como eu gosto de dizer, pelo buraco que Deus me deu, lá pela vagina.

O Boy me deixou no pré-operatório com feições mais dramáticas do que ele normalmente me olhava. Os olhos lindos agora eram carregados de preocupação, enquanto eu fazia piadas idiotas sobre a “transferência do corpo” estar inclusa no seguro. Eu tenho tendências a idiotice quando estão para perfurar meu rim – agora eu sei. “Fica tranquilo – vou sentir só uma picadinha!” – tentava acalmá-lo em vão. Na entrada do bloco cirúrgico, usando minhas roupas descartáveis – fazia brincadeiras com a equipe com a tranquilidade de quem ia “logo ali se operar e já voltava”. Dr. Tracey apareceu por entre as portas do bloco (com seu sorriso de alívio por finalmente me ver no hospital) e garantiu “Nós cuidaremos de você”.

– “Não tenho palavras em inglês ou português para agradecê-lo” – digo com os olhos mareados.

Fico um minuto sozinha enquanto a equipe prepara a sala. Sem ninguém para entreter ou me tranquilizar, me ocupo do futuro desconhecido. “Eu não posso morrer”. Frase que passei a mentalizar sempre que fico com medo. Na turbulência de um avião. Num pequeno acidente de carro. Numa possibilidade de assalto. Antes da minha cirurgia. “Eu não posso morrer”. Eu não posso morrer e tirar dos meus pais mais um filho. Não posso morrer. Não posso ter uma lápide, não posso ir para o céu. Não ainda.

Eu nunca me ocupei da minha morte antes de perder o meu irmão. Sempre achei que morrer jovem seria até mesmo poético – com minha pele boa, antes de ter remorso demais da vida ou das pessoas. Pois não mais. Parece que com a despedida do meu irmão, a minha vida já não me pertencia mais. Pensei nos meus pais e chorei as lágrimas que escondia de todos até aquele momento. Agradeci por passar por esse processo bem longe deles. Não aguentaria tê-los na sala de espera, aguardando notícias minhas. Rezei para o meu irmão, pela primeira vez pedindo um favor. “Léo, por favor. Eu não posso morrer.”

– Está pronta, Antônia? – a enfermeira interrompe meu pedido.

– “Não. ‘Léo, por favor. Eu não posso morrer’ (mentalizo)”.  – Abro um falso sorriso de confiança – “Pronto. Agora sim, estou pronta”.

Sou posicionada abaixo daquelas luzes enormes (e assustadoras) da sala de cirurgia.

– Oi Antônia, sou o anestesista, você vai sentir um piquizinho. Conte até cinco e pense num lugar que você queira visitar em seus sonhos.

– “Ok.  – respondo prontamente – ‘Léo, por favor. Eu não posso morrer’ (mentalizo de novo)”. “5,4,3 – …”

Fim da Continuação na próxima sessão….

Próxima sessão: O garoto e a pedra

Palavras-Chave

9 de agosto de 2017

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6 Comments
  1. Responder

    Gabriela

    7 de agosto de 2017

    E eu aqui pesquisando no Google sobre a cirurgia q serei submetida semana q vem, uma Nefrectomia por conta de um nódulo q achou meu rim um lugar lindo para morar, eu morrendo de medo, leio esse texto romântico/ hospitalar em meio a minha turbulência,kkkk. Me identifiquei tantooo Antônia, q vou aguardar o restante. até porque eu não posso morrer…

  2. Responder

    Verônica

    6 de agosto de 2017

    Ontem, tava pensando que fazia tempo que tu não postavas mais nada. Até pensei : ” Deve ter acontecido algo com ela”. Fico feliz que agora tá tudo bem. 🙂 !!! Ansiosa pela próxima sessão. Abraços !!! E se cuida !!!

  3. Responder

    Dulce

    6 de agosto de 2017

    É o que me dá mais medo nessas viagens que faço para Londres e outros lugares…
    Bom que estou na casa de amigos, mas, se pintar uma emergência…
    “Eu não posso morrer”…
    Não longe de casa e de quem amo!!!
    Melhoras Antónia!

  4. Responder

    Ana Teté

    6 de agosto de 2017

    Que saudades eu estava de poder fugir um pouco de mim em ti.
    5… na preocupação 4… acreditando q 3… pq tem continuação 2… você está bem 1… na espera!
    Bjos gata.

  5. Responder

    Nanny Ruivo

    6 de agosto de 2017

    Parabéns Antônia! Amo participar lendo de tuas seções no Divã…
    5…4…3… aguardando anciosa pela próxima seção ? bjos

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Aline Mazzocchi
No divã e pelo mundo

De batismo, sim, Aline. Mas eu precisei do codinome Antônia - do latim "de valor inestimável" - para dividir minhas sessões públicas de escrita-terapia. O que divido aqui é o melhor e o pior de mim, tudo que aprendi no divã e botando o pé na estrada. Não para que dizer como você deve ver a vida. Mas para que essa eterna busca pelo auto-conhecimento, não seja uma jornada solitária, ainda que pessoal e intransferível. Então fique a vontade pra dividir o divã e algumas boas histórias comigo. contato@antonianodiva.com.br

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