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A vida exige faxina

em
9 de janeiro de 2018

Sobre os maravilhosos aprendizados que a estrada te oferece, um deles merece destaque por sua capacidade gigantesca de transformação. É o aprendizado do desapego. E aqui não estou falando de conforto, mas de desapego material mesmo. Como já comentei em inúmeras oportunidades em que peguei a estrada, é impossível viajar de forma pesada. As costas doem, e o caminho fica penoso. Precisamos de bagagem leve, mobilidade, e de muita versatilidade naquilo que levamos. A gente precisa deixar o peso de “adquirir” em troca da leveza de “viver”, “ver” e “sentir”. E “adquirir” e “viver” não cabem juntos na mesma mochila.

Após viver 7 meses de uma vida cigana, com uma mochila planejada para uma viagem de 2 meses, foi impossível voltar para casa a mesma pessoa. Até porque a gente sempre volta diferente de uma viagem. Voltei para uma casa acumulada de coisas. Vestígios e lembranças de vidas passadas, pessoas passadas. Um quarto abarrotado de roupas que nunca mais usei e outras tralhas juntando poeira. Era como se mesmo sem a mochila nas costas, eu sentisse todo o peso de anos sendo uma acumuladora. Senti-me amarrada, sufocada embaixo de uma pilha de troços que já não faziam sentido.

E foi desta angustia crescente de sentir-me pesada, que eu comecei a me desfazer daquilo que não servia mais. Não apenas aquilo que não servia mais no meu corpo, mas no mesmo espaço, nesta nova fase da minha vida. Comecei pelo meu quarto, e segui por cada cômodo da casa, convidando a minha família a praticar o mesmo. Convenci meus irmãos a revisarem o baú de brinquedos que fica na sala, cujo conteúdo eles nunca mais tocaram. Separamos todos aqueles que podiam virar sorrisos na vida de outras crianças – e não foi pouca coisa. Desfizemo-nos de utensílios de cozinha que prometemos arrumar ou usar, mas nunca arrumamos ou usamos. Separamos os conjuntos de pratos, talheres incompletos, que há anos não tocávamos. Deixamos ao alcance das mãos apenas aquilo que aproveitamos diariamente. E assim percorremos a casa inteira, quarto a quarto, removendo a energia parada, planejando sua reciclagem, abrindo espaços e janelas para que o ar e novas vibrações circulassem.

A cada nova mochila preenchida com coisas que na minha casa só ocupavam espaço, ficávamos renovados com a possibilidade da energia parada sendo movimentada. Com novos espaços sendo criados, e com o pó do passado sendo varrido para fora de casa. E esse movimento foi contagioso. Avisamos amigos que estávamos nos desfazendo da vida parada para que ela pudesse achar outro sentido nas vidas de quem precisasse. E logo vimos os mesmos aderindo ao movimento. Nossa casa teve a sala entulhada de doações que precisavam de vida nova. A cada entrega destes itens, um agradecimento pela oportunidade do desapego. Por promovermos o ato de dar sem olhar a quem. E por sugerir uma faxina tão necessária – inclusive a de consciência, sobre nossos acúmulos e privilégios.

O resultado não podia ser mais lindo. Nossa energia atendeu a 3 instituições da cidade, com roupas e sapatos em perfeitas condições, brinquedos entregues antes da noite de Natal, entre outros itens que foram repassados. E o belo desta troca não está no simples ato de receber, mas na prática de entregar. É a reciclagem da energia na sua forma mais bonita.

Aquilo que não servia para mais ninguém foi para o lixo. Porque fazer faxina é também aprender a jogar fora. Descarte é parte importante do seguir adiante. Joguei fora o quadro com as fotos do ex-namorado, contas antigas, embalagens vazias, recibos inúteis. Destinei para reciclagem vidros e revistas velhas. Joguei fora alguns sentimentos acumulados, e reciclei outros no processo. O peito ficou mais leve. O meu quarto agora tem espaço para novas memórias, conchinhas da viagem mais recente, e fotos de amores novos.

Tudo cheira a frescor. O vento circula apenas pelas coisas que escolhemos manter por perto. Pelo menos até a próxima faxina. Porque a vida exige uma faxina. A troca de energia. Uma grande faxina de karma. A vida exige novos espaços para que outras memórias ocupem o seu lugar – espaço físico ou espaço no coração. Ela exige leveza para que a gente possa seguir andando. Afinal, os lugares que ocupamos perto de nós são como cantinhos da nossa alma – precisam de revisitas, revisões, reciclagens. A boa e velha faxina. É só assim que a alma fica realmente limpa.


Fim da sessão.

♥ ps1: Vivemos alguns dos momentos mais belos no mês de dezembro, entregando carinho em forma de objetos a pessoas que dedicam a vida cuidando de outras pessoas em situação de instabilidade. E pelo simples fato de conhecê-las, somos gratos. Aprendemos que algumas das pessoas que menos tem, são as que mais querem ajudar. Encontramos pessoas que tiveram a sensação de “natal cumprido” depois da entrega de seus pertences. E muito amor. Recebemos, redirecionamos doações, e o que ficou foi amor. E para amor, a gente sempre arruma mais espaço.

https://www.facebook.com/aline.mazzocchi/videos/10211168451473827/

 

♥ps2: Talvez 2018 seja um ótimo ano para começar uma faxina, considerando que ele é ano de eleição, e precisamos urgentemente de uma limpeza.

Palavras-Chave

26 de janeiro de 2018

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4 Comments
  1. Responder

    Valentina

    26 de janeiro de 2018

    Que lindo!!! Que legal!!!!

    PS: como os guris tão grandes ????????????

  2. Responder

    Gaby Quintal Ferreira Beraldi

    9 de janeiro de 2018

    Ótimo texto! Desde minha adolescência faço isso todos os finais de ano, quando consigo, faço no meio do ano também! Odeio acumular coisas, o frescor pós faxina é das melhores sensações, limpeza da alma mesmo, rsrs!!

  3. Responder

    Anna Santos

    9 de janeiro de 2018

    Coincidentemente estou nesse exato momento fazendo isso no meu quarto. Por uma questão médica, tive que ficar dois dias em casa, e após um período de agonia por estar parada, resolvi fazer a faxina. É incrível como dá para sentir a energia fluindo…

  4. Responder

    Dulce

    9 de janeiro de 2018

    Obrigada Antônia! Mais uma vez você nos ensina e nos lembra que faxina é limpeza e não adianta limpar o aparente e deixar poeira em cima e atrás dos quadros.

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Aline Mazzocchi
No divã e pelo mundo

De batismo, sim, Aline. Mas eu precisei do codinome Antônia - do latim "de valor inestimável" - para dividir minhas sessões públicas de escrita-terapia. O que divido aqui é o melhor e o pior de mim, tudo que aprendi no divã e botando o pé na estrada. Não para que dizer como você deve ver a vida. Mas para que essa eterna busca pelo auto-conhecimento, não seja uma jornada solitária, ainda que pessoal e intransferível. Então fique a vontade pra dividir o divã e algumas boas histórias comigo. contato@antonianodiva.com.br

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