Crônicas

O primeiro frio

em
26 de abril de 2016

Hoje foi aquele dia do ano em que admitimos que o período de estações mais quentes acabou. Do sudeste ao sul do país, esta terça-feira foi dia de procurar um casaquinho e considerar não apenas a troca de guarda-roupas, mas também a troca de cenários. Ruas mais vazias, programações mais caseiras e vinho. Ora, se tem algo que justifique o frio, é o aquecimento de um coração através da vinhoterapia – afinal, antes só vinho, do que mal acompanhado. Mas o primeiro frio do ano traz muito mais que um cobertorzinho para a nossa cama. Ele tem um quê de nostalgia, de memória. É impossível não sentir todo tipo de arrepio causado pelas temperaturas baixando e os dias se transformando. O primeiro frio sempre mexe com a gente.

O primeiro frio mexe comigo, por exemplo, porque me lembra a infância. Lembro-me com saudade da minha mãe lutando para arrancar-me da cama enquanto me socava roupa, a ponto de eu não conseguir me mexer direito. O primeiro frio recorda o meu pavor infantil quando encarava a serração fantasmagórica das manhãs, no melhor estilo The Walking Dead, a caminho da escola. Lembra-me da minha habilidade de pequena de estar sempre com as mangas ou meias molhadas. O primeiro frio traz de volta a lembrança do meu pai ligando a estufa no banheiro meia hora antes da minha vez de lavar as orelhas, para que eu “não pegasse uma friagem”. Faz-me recordar da minha adolescência, na parada esperando o ônibus, dançando no lugar para não congelar com o ventinho provocado pelo deslocamento dos carros. Lembra-me de sentar com receio na cadeira gelada da sala de aula e da busca por todo e qualquer raio sol na hora do recreio.

O primeiro frio desperta a hora de trocar os biquínis da gaveta pela coleção de meias-calças, e colocar os casacos coloridos para tomarem um ar. Traz o charme das tocas, das mantas e das luvas. O primeiro frio marca o início da era das polainas (me julguem!). O desejo por sobreposições, por abusar do batom escurão e realça o fervor que causam os gatos de jaqueta e botas cano médio. O frio tira pra fora do armário aquela calça gostosa de moletom que cabe tanto em você quando nele. O primeiro frio aponta que acordou a oportunidade de reinventar o visual, se transfigurar, se travestir e mudar. Trocar a paleta. Sacudir a nossa roupagem.

Com o primeiro frio acordamos para súbita troca de cardápio. Onde antes tinha espaço para salada e sushi, agora o estômago clama por risotos, massas e fundis (a vida é curta para se viver sem carboidrato). Aqui nas querências  – e na minha humilde opinião, nada seduz mais que a semente que chega junto com o vento Minuano. Garotos, por favor, não me deem flores, deem-me sacos de pinhão! Com sal, com mel, com vinho, com amor. Isso sim aquece o meu coração no frio. Ou me convidem para ir a serra para tomar uma sopa no pão. Não tem nada mais definitivo entre a solteirice do calor, e o engajamento do frio, que uma sopa no pão em Gramado. É romance com queijo ralado e um bom Carbernet.

E por falar em romance, o primeiro frio faz pensar em carinho, xodó, colo, entrelaçamento. Desculpe-me o clichê, mas como substituir um cobertor de orelha? Ahn? Ou incontáveis domingos chuvosos de edredom, Netflix e amassos?  Longas e promissoras horas daquelas caricias quentes que deixam as janelas embaçadas e o frio do lado de fora. Que estação que sabe criar boas companhias. O primeiro frio lembra pés enroladinhos. Faz recordar da delícia e do desespero que é aquecer as mãos geladas nas costas quentinhas de alguém. Delícia pras mãos e desespero para as costas. O primeiro frio relembra aquele cara que um dia amei e que me enrolava como um tamaki em meio aos cobertores nas sonecas preguiçosas de sábado. O primeiro frio evoca a ida à praia com alguém especial. Ou aquele final de semana no sítio. O primeiro frio lembra o frio na barriga.

Ahhhh nostalgia gelada… O primeiro frio lembra Londres e a Trafalgar Square lotada de turistas e seus guarda-chuvas. Lembra croissant quentinho na cafeteria. O primeiro frio lembra que os ranhentos lá de casa ficarão de narizes assados logo, logo – eles e todas as crianças do mundo. Lembra bolinho de chuva e chimarrão (ou equivalente). Lembra quentão. Livros finalmente lidos! Lembra Game of Thrones e que “Winter is (finally) coming”. Lembra Frozen, Olaf e abraços quentinhos. Lembra bolsa de água quente e cheirinho de chá. O primeiro frio lembra que é hora chamar as amigas para a sala de casa e acender a lareira, ou chamar o gato e aumentar o calor do quarto. O primeiro frio lembra que a temperatura pode até cair, mas que os próximos meses merecem ser aquecidos com bons momentos, pequenos e grandes prazeres e suspiros com vaporzinho.

Pega o casaquinho e te joga.


Fim da sessão.

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2 Comments
  1. Responder

    Ana Teté

    28 de abril de 2016

    Tá, você me convenceu. Existe alguma coisa boa do frio, mas eu disse alguma apenas rsrsrs… Só você pra me fazer “escrever” isso (assumir talvez?) eu? falando de coisa boa do frio? o que está acontecendo comigo? ahahah…
    Aquele abraço quentinho! ❤️

  2. Responder

    Mirna Nunes

    27 de abril de 2016

    Que delicia ! ❤️

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Aline Mazzocchi
No divã e pelo mundo

De batismo, sim, Aline. Mas eu precisei do codinome Antônia - do latim "de valor inestimável" - para dividir minhas sessões públicas de escrita-terapia. O que divido aqui é o melhor e o pior de mim, tudo que aprendi no divã e botando o pé na estrada. Não para que dizer como você deve ver a vida. Mas para que essa eterna busca pelo auto-conhecimento, não seja uma jornada solitária, ainda que pessoal e intransferível. Então fique a vontade pra dividir o divã e algumas boas histórias comigo. contato@antonianodiva.com.br

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